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Romance

A Paixão

Almeida de Faria. Cosac Naify, 224 págs., R$ 44,90.

Uma trança de vozes e de olhares, sustentada pela força da poesia — assim se pode descrever A Paixão, romance que o português Almeida Faria lançou em 1965 e que agora retorna às nossas mãos, em edição da Cosac Naify. Mescla de exaltação e de martírio, a paixão é um dos mais complexos sentimentos humanos. Não é confortável — mas é do desconforto que ela arranca sua potência. Não é consoladora — mas é do desconsolo que tira sua duração. Esses sentimentos aflitos confluem para o romance de Almeida Faria, que leio com uma mistura de apego e de sofreguidão. Um livro que só me propõe reações imoderadas e que me arranca de qualquer tentativa de distanciamento. Um desses livros que nos vencem e que, por isso, se tornam grandes livros.

Conta a história de uma família de lavradores do Alentejo: os pais, cinco filhos, duas criadas e um velho. Amarra, aperta e esgarça esses dez personagens igualados pelo repuxo da paixão. A história, passada em uma Sexta-Feira Santa, ou Sexta-Feira da Paixão, está dividida em três partes: manhã, tarde e noite. O tema do romance talvez seja o tempo — que apaixona e depois mata. O ciclo vital, que ilude, desilude, ilude novamente — e nos leva, sempre, de volta ao mesmo lugar. A paixão é, antes de tudo, sofrimento lento e cortante. A alegria que dela se retira, quase sempre, se assemelha à morte. É com uma mistura de espanto e tristeza que avanço nas páginas de Almeida Faria. "Páginas sem nada", como descreve o filho João Carlos: "A manhã, quente e abafada, completamente estática, ardendo em claraboias e, para fora da vila, ao longo da longa estrada, dói no olhar e na memória, clara como página sem nada". Páginas em que os movimentos conduzem ao fascínio da estagnação.

A paixão— irrefreável movimento estático — define, sem penumbras, a aventura do homem. Você treme, o corpo lateja, o pulso acelera, mas você continua no mesmo lugar. Diz o filho André: "Acordo e tudo é exatamente como se tivesse chegado da mais longínqua morte". Estamos condenados à repetição. Trememos, apaixonamo-nos e repetimos. Há uma manhã solar, uma tarde que declina, vem uma noite escura e, em seguida, o dia amanhece outra vez. A agitação interior não corresponde a um movimento exterior. Avançamos às cegas, como sugere o filho Tiago: "todo amor é cego, diz o povo, quem muito espreita não ama, quem muito ama não vê". É, antes de tudo, com o corpo e seus suores que Almeida Faria escreve. Extrai a poesia do sangue, cuja dança acelerada só se esgota na morte.

Tudo isso provoca medo — e a leitura de A Paixão produz, de fato, certa intranquilidade. Assim sobrevive o filho Jó durante o serviço religioso da Sexta-Feira da Paixão: "Jó tinha por vezes pânico terror da realidade e aquele era dos momentos em que sentia mais". A paixão é um disparar de perguntas que não combinam com suas respostas. Diz o irmão João Carlos: "Pergunto e a resposta é um distante sorrir; eis-me na casa imaginária em que revivo as faces que construo do nada". Também a filha Arminda admite sua insegurança: "Tenho medo de dormir, tenho tempo depois, demasiado tempo". É o medo que faz o mundo andar.

Apesar da paixão que corta — seja para a aflição, seja para a exaltação — , o filho Jó não consegue se livrar do tédio. "Na aula, ao fundo, à direita, sozinho na carteira de dois, longe de tudo, abandonado, Jó estava olhando para o tempo, desatento, farto". A paixão não resolve nada, só prolonga e adia. Não preenche a solidão, só a exacerba. É sozinho como Jó que me defronto com o relato de Almeida Faria. Há que suportar a paixão do texto, entregar-me a seu descomedimento. Narrativa costurada com paciência, ela reproduz o ritmo constante da casa: "A manhã da mãe e da criada de dentro; trabalho sinuoso, subterrâneo e lento".

Fosse convidado a falar sobre seu trabalho, Almeida Faria poderia repetir as impressões do sacristão, em quem o velho criado Moisés se ampara: "Falam, ele e Moisés, de coisas misteriosas, tão simples, quase incríveis, solenes de solidão e de sossego". Desafiam, assim, a embriaguez circular da paixão. Uma fala giratória, que ao final se evapora: "são velhos, tanto que a fala dele se assemelha ao vento, e quase se separam parece que é para sempre". Tudo no mesmo padrão aquoso, dissolvendo-se em si mesmo e retratando, desse modo, uma vida em que a paixão, se é o motor, é também o fecho. A paixão nos sustenta. Ela nos traz a ilusão de alegria, mesmo que nunca se separe da dor. A paixão, com seu estilete, nos mantém de pé. Dela Almeida Faria arranca, com paciência, sua narrativa.

O escritor português desenrola sua escrita a partir daquilo que o homem tem de mais próprio: o corpo. Costura sensações, impressões, afetos; apresenta ligeiros tremores, mas também breves delícias, pintando um retrato do homem a partir das pequenas coisas. Estratégia que tonifica e empurra seu relato. Há todo um esforço, que é também desgaste, semelhante àquele exigido do leitor. Atônito, saio enfim da leitura de A Paixão, feliz, mas esgotado. Quando o fecho, a sensação é a de que a realidade se apagou — de que ela estava toda comprimida naquelas páginas e agora só me resta uma sala escura. Uma sala feita de nada. Como o próprio relato nos diz: "A noite, eis como ela se instala no coração da história, novamente se instala e parece que tenta aqui ficar para durar". Mas não consegue, porque a máquina da paixão continua a se mover e logo amanhece outra vez — logo outra narrativa vem tomar seu lugar. E nova leitura se impõe.

A Paixão é um romance que trata, antes de tudo, da força do ciclo vital, que gira e gira, estonteia, sempre prestes a explodir; mas perpetua, assim, nossa lenta marcha de gozos e de sofrimentos. É só no fim, como está no fecho do romance, que "cortam-se os ramos despidos, o vento arranca as raízes e é então que tomba a árvore". Mas é ali também — como um livro que, arrancado à força, sai de outro livro — que a paixão da vida, em um giro brusco, se conserva. É a paixão que sangra, mas é ela também que faz nascer. Não será um exagero dizer que, por vezes, ela é tudo.

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