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Contos - Amálgama - Rubem Fonseca. Nova Fronteira, 160 págs., R$ 39,90 |
Contos - Amálgama - Rubem Fonseca. Nova Fronteira, 160 págs., R$ 39,90| Foto:

De origem árabe, a palavra "amálgama" se refere não só à liga de mercúrio com outro metal, mas tem também o significado mais amplo de ajuntamento, combinação, fusão, e ainda o de confusão. Essa mistura – esse amálgama – de significados me ajuda a ler Amálgama (Nova Fronteira), o novo livro de contos de José Rubem Fonseca. Fala não só na mistura, em um mesmo livro, de 34 textos curtos e bastante heterogêneos, mas também de uma estética que leva cada um desses escritos a vacilar entre vários gêneros e a experimentar novos caminhos.

Nas narrativas de Fonseca, os acontecimentos parecem ficar sempre pelo meio, quebrados, adulterados. Descobrimos a verdade só para esquecê-la, já que a verdade toda é sempre insuportável – como lemos em "Segredos e Mentiras", o texto que abre o livro. As palavras, em vez de ajudar, muitas vezes afogam quem as diz. Admite, de saída, o narrador: "Tenho uma tendência à prolixidade, uso mais palavras e frases do que o necessário e acabo me tornando enfadonho". Os contos de Fonseca não são enfadonhos, ao contrário – mas, apesar dos textos brevíssimos, seus narradores parecem sofrer, quase sempre, de alguma dificuldade para expressar.

Voltando à ideia do amálgama, é bom lembrar que, na química, o mercúrio é um elemento metálico pesado e venenoso. Trata-se do único metal que mantém a forma líquida à temperatura padrão – o que acentua seu caráter de disfarce e de segredo. Na mitologia, Mercúrio é o deus da eloquência e ocupa um lugar "entre" – é um mensageiro que circula de um lado para outro traçando correspondências e transmitindo informações. Todos esses significados acentuam o caráter complexo do amálgama e se refletem nos relatos de Rubem Fonseca.

São histórias simples mas que, muitas vezes, se situam para além de qualquer entendimento, o que se evidencia no brevíssimo relato de seis linhas (poema?) chamado "Sentir e Entender". Afirma Fonseca, sem qualquer medo do lugar comum: "A poesia não é para ser entendida é para ser sentida". Aponta, assim, para um velado, mas forte, caráter poético não só deste, mas dos escritos que ocupam o livro. A tese se desenvolve em um conto como "O Espreitador", a história de um homem que persegue mulheres nas ruas acreditando na origem benigna de sua fixação. Um dia, um psiquiatra lhe sugere, ao contrário, uma origem trágica para seu vício – que ele, enfim, não através do pensamento, mas dos sentimentos, entende ser a verdadeira. A verdade se camufla. A lógica da verdade pode ser um exercício de mentira. A verdade pode estar nas brechas.

Não são temas fáceis de enfrentar e, por isso, Fonseca define o escritor como um sofredor. É o que sofre de ideias que não sabe que tem, de sentidos que lhe escapam, de motivos que ignora. Está dito em "Escrever", pequeno relato em que o autor se detém para pensar no que faz: "A ficção consome corpo e alma. Os poetas também poderiam ser incluídos aqui, se eles não tivessem pacto com o diabo". No caso dos poetas, o suposto pacto os salva. Já os ficcionistas ficam absolutamente sozinhos com seu destino. "O ficcionista quanto melhor pior, sofre mais, depois de algum tempo não aguenta o sufoco". Os mais sensatos, ele prossegue, desistem. Para Fonseca, desistir pode ser a maior sabedoria de um escritor.

O escritor deve lidar com imenso cuidado com o real. Está em "Sonhos": enquanto conserva como um segredo suas fantasias sexuais com a psicanalista, um analisando consegue se conservar inteiro. Mas quando, incentivado pela ideia de "dizer toda a verdade", ele as revela, o real se impõe de modo avassalador – a analista, para sua surpresa, cede – e os sonhos se desmancham. Por isso, como está no relato seguinte, "Fábula", só devemos nos referir à realidade se a deformamos. O que são as fábulas? São relatos que aproveitam uma ficção alegórica para sugerir a verdade. A ficção não diz a verdade, ela apenas a sugere. Só deformando a realidade, torcendo-a um pouco, conseguimos aceitá-la. Só a alusão - e nunca o olhar direto nos olhos do real – salva um escritor.

Mas Rubem Fonseca também não confia inteiramente nas fábulas. Pensando na célebre fábula de Esopo, e ao contrário de seu autor, defende a preguiça da cigarra contra o empenho da formiga. "Qual é a lição, o preceito moral desta fábula? Que cantar é um crime que merece ser punido? Que a alegria é um mal a ser combatido? Que o desejo e o amor devem ser execrados?" – ele se pergunta. "Entre a formiga e a cigarra, quem é pior?" O narrador termina seu relato negando que as fábulas de Esopo sejam uma lição de moral e de astúcia, e sugerindo que o leitor as jogue no lixo. Defronta-se, assim, com os perigos inerentes à alusão, que, ao remeter para vários lados simultâneos, em vez de clarear pode cegar. Risco, mas também grandeza da ficção.

São difíceis as relações de um ficcionista com a verdade. Em "Best-seller", depois de escrever um grande fracasso – um livro que não vende nada –, um escritor ouve de seu editor o conselho: "Ninguém quer mais ler ficção, a ficção acabou". Ele lhe pede que, em vez de escrever fantasias, passe a escrever histórias reais, já que os leitores de hoje só se interessam pelo real. Decidido a seguir o conselho de seu editor, o autor passa a experimentar situações de risco pessoal, pensando em depois relatá-las em seu livro "verdadeiro", para assim chegar ao leitor que tanto procura. Numa de suas experiências com o real, ele quase morre – e é o relato dessa pequena tragédia que toma as manchetes dos jornais. Em consequência, seu livro anterior, o fracassado (e ficcional) "Rua do Pecado", passa a vender muito. É o seu fracasso diante do real, desmentindo a tese do editor, que empurra o sucesso de sua ficção. Os leitores querem ler ficções mesmo, podemos concluir, mas esperam que elas estejam manchadas pelo assombro do real.

Amálgama, o novo livro de José Rubem Fonseca, tem, assim, um forte caráter experimental. Cada relato é uma experiência diferente em busca de uma nova posição diante da escrita. Todos parecem amputados – mas a verdade se diz sempre pelo meio. É ali onde o ficcionista fracassa que pode se abrir, sem que ele saiba disso, seu verdadeiro caminho.

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