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Roberto Gomes

Poty, Valêncio e um milagre acontecido

O telefone tocou e era ele, o inconfundível:

– Escuta aqui ô... é o seguinte... é o Valêncio. Vou levar o Poty aí na editora.

Desligou.

Como seria a primeira visita que Poty faria à editora – que funcionava num porão – dei uma arrumada na mesa, ajeitei duas cadeiras, abri as cortinas.

Não demorou, chegou o fuque do Valêncio – meio torto, de cor indefinível, o pára-choque dianteiro quase arrastando nos paralelepípedos. Uma das grandes divergências que tive com o Valêncio foi produzida pela comparação que ele fez daquele fuque com o meu Opala – até hoje comigo e em estado de zero. Fiquei indignado. Que ele tivesse opiniões diferentes das minhas a respeito do filme Dersu Uzala, do Kurosawa, eu podia aceitar. Mas que comparasse aquele calhambeque com meu Opala 73, jamais. Discutimos muito e passamos umas semanas sem trocar palavra.

Quando Poty desceu do fuque, fiquei abismado. Precisou da ajuda do Valêncio e mal conseguiu se colocar de pé. Arrastou suas sandálias franciscanas na minha direção, puxando de uma perna, as mãos nas cadeiras, gemendo, fazendo caretas de dor. Fiquei chocado, lamentando o quanto havia envelhecido, mas ele me explicou, entre caretas e resmungos, o acontecido. Naquela manhã, ao sair da cama, sofrera um mau jeito, caíra no chão. Daí o estado lastimável em que estava. Nervo ciático, quadril fora do lugar, sei lá! dizia ele.

Valêncio o segurou, eu segurei a cadeira e nela colocamos o alquebrado Poty, que reclamou daquela chateação que lhe arranjara o Valêncio, obrigando-o a sair de casa naquelas condições.

Ele estava ali para decidir um das muitas polêmicas – além daquela do fuque versus o Opala – que eu e o Valêncio tivemos na vida. Tratava-se da capa do livro Maciste no inferno, que estávamos editando. Já havíamos discutido muito quando da montagem do miolo do livro, mas sempre conseguíamos nos entender. Quanto à capa, não.

O Valêncio queria colocar na capa um desenho cheio de detalhes e minúcias. Era um bom desenho, mas eu achava que não tinha nada a ver com o livro, além de criar problemas gráficos para o título, o nome do autor e a logomarca da editora. Por isso estava ali o gemente e descadeirado Poty, convocado para decidir nossa pendenga.

Entreguei a ele o projeto do livro e o desenho. Ele olhou daqui e dali, virou o desenho de todos os lados e sentenciou:

– Não dá.

Valêncio explodiu:

– Como que não dá?!

Poty explicou:

– Não dá. É um ótimo desenho, mas nem sempre um bom desenho dá uma boa capa. Não dá.

Era o que eu tinha dito ao Valêncio nos últimos dias.

Valêncio, chateado com o veredicto do Poty – que no dia seguinte fez um belo desenho para a capa do Maciste – deu o braço a ele e os dois se dirigiram ao fuque. Eu entrei para atender ao telefone. Logo em seguida, escutei os dois aos gritos. Imaginei: quebrou o pau.

Saí correndo. Lá estavam eles no meio da rua. Cantando e dançando. Valêncio ria e batia palmas, no estilo cossaco, e Poty executava uma dança maluca, sacudindo os braços, espichando as pernas, remexendo os quadris. Deixei de lado a hipótese de se tratar de um ataque de loucura – já que os dois eram loucos há várias décadas – e fiquei imaginando se não seria um ataque de pó de mico ou se eu não havia caído numa gaiatice armada por eles.

Nada disso. Entre gritos e cantorias, Valêncio me explicou que fora colocar o Poty no fuque, mas, desastrado como sempre, escorregara no paralelepípedo e praticamente o jogara dentro do carro. Poty caiu de bunda no banco e os dois escutaram um forte estalar de ossos. Deu-se então o milagre. Poty soltou um grito, colocou as mãos nas costas e disparou a rir:

– Passou, cara! Passou a dor! Tô curado!

Eis o que explicava a dança do pó de mico. Era pura alegria. Quiropatia à moda Valêncio Xavier. Entraram no fuque e lá se foram rua afora, como ao final de um filme de Chaplin, me dando adeus pelas janelas do carro, às gargalhadas, para sempre.

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