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As listas e prêmios de me­­lhores do ano alimentam a indústria cultural, seja na música, no cinema ou na literatura. O en­­dosso da crítica pode propiciar ao que já foi lançado há meses uma valiosa sobrevida nas prateleiras das lojas. E um poderoso impulso comercial, no caso de filmes que ainda chegarão ao circuito exibidor fora dos Estados Unidos.

Quando o assunto são os li­­vros, ainda longe de serem um esporte nacional por aqui, nunca se sabe se esse tipo de reconhecimento tem ou não grande consequência, mas neste ano, a consagração de Leite Derramado, último romance de Chico Buarque, uma unanimidade, deverá garantir a venda de alguns milhares de exemplares a mais. Até porque é uma obra bastante pertinente no momento histórico que o país atravessa.

Eulálio Montenegro d’Assum­­pção, o narrador de Leite Derramado, é o quase cadáver de um Brasil agonizante. Senil, o personagem também é patético. Representa os despojos do país dos títulos de nobreza concedidos pela monarquia em troca de dinheiro e apoio político. Simboliza as famílias com sobrenome, eira e beira, que se refugiam até hoje na ilusão de serem melhores do que a plebe rude que lhes serve, lhes limpa as latrinas.

Chico faz uso de fina ironia pa­­ra falar de uma elite parasitária que, ao longo do século 20, foi perdendo pompa, circunstância até sobrar pouco. Mas que continua a incomodar, a desprezar o popular e tudo aquilo que ameaça seu status quo.

Quando li Leite Derramado, em pouco mais de 24 horas, fiquei incomodado. O livro, vencedor dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom deste ano, guarda semelhanças formais evidentes com Memórias Póstumas de Brás Cubas, clássico de Machado de Assis.

A narrativa é construída em capítulos curtos, numerados, narrados em primeira pessoa. Tal e qual sua matriz. Chico adota um tom confessional, por vezes autoparódico, para falar do Rio de Janeiro na virada do século passado, uma cidade de Capitus e Betinhos e Escobares, e que, de certa forma, ainda sente saudade dos tempos do império, ceifado pela Proclamação da República, em 1889.

A razão do meu incômodo, todavia, não foi a intertextualidade de Leite Derramado com a obra de Machado, o diálogo literário que ele estabelece com o universo do Bruxo do Cosme Velho. Foi, sim, a dicção melancólica de Eulálio, um homem que mais perdeu do que ganhou numa existência inglória, sempre à sombra do pai onipotente, de quem herdou nome e sobrenome, além da obrigação, frustrada, de dar continuidade ao mundo de vastos privilégios para muito poucos.

Como o personagem, ao contrário de Brás Cubas, Eulálio ainda não está na cova e sua agonia perturba. Tem quase 100 anos e está perdendo a memória, talvez em decorrência da medicação pesada que recebe num pútrido hospital público, onde tem de conviver com gente por quem sente nutriu profundo desprezo. E como a narrativa segue o confuso fluxo de seus pensamentos, somos dragados por um redemoinho, no qual passado, presente e quimera se misturam e enganam o leitor. Por vezes, é difícil separar a verdade da mentira que, no plano do delírio, são faces uma mesma moeda.

E, lá no fundo de Leite Derramado, está uma história de amor que Eulálio amargou. Infeliz. Como os protagonistas de Dom Casmurro, ele e sua mulher, Matilde, também acabam consumidos por uma relação corroída pelo ciúme, pela desconfiança obsessiva de uma traição que pode nunca ter ocorrido.

Assim, o protagonista de Chico Buarque rola, despenca por um abismo que se confunde com a história do Brasil do século 20. Tenta se agarrar no que está ao alcance de suas mãos, mas nada o salva de um mergulho no vazio que pode ter sido sua existência – na verdade, não foi. O autor, cujo engajamento inspirou tantos no passado, conseguiu fazer de uma obra profundamente pessoal um manifesto político contundente, ainda que não tenha si­­do essa sua intenção.

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