• Carregando...
O Guairão aplaude Milton Nascimento – Nada Será como Antes: catarse | Henrique Araújo/Divulgação
O Guairão aplaude Milton Nascimento – Nada Será como Antes: catarse| Foto: Henrique Araújo/Divulgação

Sábado passado fiz uma interessante, e algo perturbadora, incursão pelo labirinto do tempo. A música, como poucas manifestações artísticas, tem o poder incrível não apenas de transportar o ouvinte a momentos vividos. Uma determinada canção, assim como um golpe calculado, desferido no momento certo, é capaz de nos devolver à boca o sabor de uma experiência, por vezes até soterrada pelo esquecimento. Cortante como um caco de vidro ou doce como chocolate.

O catalizador dessa sensação foi o espetáculo Milton Nascimento – Nada Será como Antes, apresentado há uma semana no Guairão. O grande trunfo da obra alinhavada pela dupla Charles Möeller e Claudio Botelho, mais até do que homenagear o genial compositor de "Travessia", talvez seja dialogar com o capital simbólico de um conjunto de músicas que, para muita gente, como eu, serviu de trilha sonora de vida, embalando amores, amizades, embates pessoais e políticos, histórias de família e trabalho.

À medida em que o espetáculo fluía sobre o palco do Guaíra – um espaço cênico que também se confunde com as tramas das histórias de várias gerações na cidade –, eu e muitos ao meu redor, que tímida, e curitibanamente, cantarolávamos para ninguém ouvir as músicas do repertório, nos tornávamos, como sugere uma das composições mais tocantes do repertório da peça, caçadores de nós mesmos, perseguindo momentos dispersos pelos anos, ao compasso dos acordes e sob o comando das letras.

Por mais que o elenco, formado por formidáveis – e alguns muito jovens – cantores, atores e instrumentistas, esbanjasse competência, eram as músicas que tinham muito a dizer sobre nós, por décadas ninados, às vezes sem nos darmos conta, pela mansidão enérgica do hoje septuagenário Bituca.

Olhar pelo retrovisor não é muito fácil, mesmo que com o rádio ligado, ouvindo as belezuras de Milton Nascimento e seus companheiros de Clube da Esquina. Pode ser uma viagem estranha, acidentada, com direito a pneu furado, e às vezes até a motor fundido. Nostalgia nem sempre é puro deleite, e quase sempre conduz ao erro. A vida, afinal, não é rascunho.

Nada Será como Antes, título do espetáculo e também de uma das criações mais lembradas de Milton, é uma frase enigmática, embotada de sentidos contraditórios, e que naquele momento, diante do espetáculo, e de minha (nossa) reação a ele, ganhou inesperado significado. Carrega em si uma mistura de revolta, resignação, conformidade, alívio e, por fim, possibilidade. Na medida em que se admite o risco inevitável da finitude, da ruptura por vezes definitiva, também se divisa a não menos provável luz da mudança.

Como diz a letra do clássico "San Vicente", de Milton e Fernando Brandt, sábado passado teve "um gosto de vidro e corte/um sabor de chocolate". Mais ou menos como viver de verdade deve ser.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]