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Wilson Martins

História de um parricídio

A República brasileira nasceu de um parricídio, carregando para sempre o remorso desse crime ritual. O fantasma de Pedro II assombrou e continua assombrando a nossa vida pública, condenada a viver com a certeza terebrante da própria ilegitimidade: mal transcorrida a primeira década republicana, objeto de um livro clássico (Afonso Celso de Assis Figueiredo et al. A década republicana, 7 vols., 1899/1901), e já os republicanos chamados "históricos" passaram a repetir o refrão da grande desilusão do que tinha sido a grande ilusão: "não era essa a República dos meus sonhos", expressão em que o subconsciente armou um epigrama involuntário: a idéia republicana fora um devaneio doutrinário, sem realismo de concepção e, menos ainda, de execução, destinado a desfazer-se ao atrito da cruel realidade (Oliveira Viana. O ocaso do Império. Rio: ABL, 2006).

Dominada pelo terror cósmico de que falava Graça Aranha, a República tinha medo, ao mesmo tempo, do futuro e do passado. Em 1907, sua insegurança psicológica levou o governo a proibir o desembarque do príncipe D. Luís no Rio de Janeiro: não seria menor o pânico, escrevia Alphonsus de Guimaraens a esse propósito no Conceição do Serro, a 19 de maio, "se o próprio Mafoma aportasse, comandando uma esquadra de infiéis, no meio das brancas cintilações dos alfanjes e cimitarras, terçados e chuços [...]. O Supremo Tribunal imediatamente, de pleno acordo com a vontade do governo, nega ao príncipe licença de desembarque, baseando-se no decreto da ditadura provisória que bania a família imperial".

No Senado, acrescentava o poeta, o Sr. Glicério (republicano histórico acima de qualquer suspeita ou abaixo de todas as suspeitas) "mostrou-se verdadeiramente assustado com a possibilidade do príncipe desembarcar: via a Monarquia restaurada, e ele despido de todas as glórias que esta perdulária República lhe deu [...]". O que principal e irreparavelmente se perdeu com o movimento sedicioso de 89 foi a sacralidade das instituições legais, o que ficou evidente no ato mesmo da deposição, quando no primeiro impulso da própria insegurança, os revolucionários embarcaram o imperador na calada de noite, por medo confessado de manifestações populares, cena imortalizada em páginas célebres de Raul Pompéia. Ao mesmo tempo, nascendo numa revolução, a República legitimou desde logo a idéia de que as revoluções são a maneira expedita de resolver os problemas políticos: está nisso toda a história da República – até hoje.

Escrito em 1925, no fastígio da década revolucionária que desejava restaurar a pureza das instituições, o livro de Oliveira Viana reflete a desilusão republicana – a dele e a da opinião pública em geral, simétrica à que ocorrera com relação à monarquia nos seus últimos anos. Havia então, naqueles tempos crepusculares, mais desencanto ou cansaço do que energia para mudanças: "Os que concluirem [...] que o ambiente do país, anterior ao golpe de 15 de novembro, era universalmente republicano, incidiriam num grande equívoco. [...] Por essa época [...] o sentimento mais generalizado não era o da crença na República, mas sim o de descrença nas instituições monárquicas, tal como existiam na Carta e eram praticadas nos centros de governo [...]". O sentimento de fé nas instituições havia desaparecido: "Nabuco bem o frisou quando disse uma vez que, nos últimos anos do Império, havia mais coragem em se dizer alguém monarquista do que em ser republicano".

Procurando o "ponto de nosso espaço histórico" em que se encontrassem as origens do declínio monárquico, Oliveira Viana acreditava encontrá-lo no "pequeno período que vai da queda do gabinete Zacarias em 1868 ao manifesto republicano de 1870", o que será, talvez, tomar peripécias ocasionais e rotineiras pelos abalos tectônicos de que elas mesmas resultavam. Na verdade, a "maré democrática", como Joaquim Nabuco a diagnosticou, vinha de um pouco antes, mais precisamente de 1862, no famoso episódio da "mentira de bronze", isto é, a inauguração da estátua eqüestre de Pedro I, "ato secundário", dizia Euclides da Cunha, catalisador, entretanto, da primeira afirmação desassombrada de idéia republicana entre nós: as mudanças de ministério que se seguiram e o Manifesto de 1970 foram apenas desdobramentos naturais do mesmo impulso. Contra os republicanos da "mentira de bronze" o senador Nabuco de Araújo afirmava que o monumento era o ato de justiça de um povo livre prestado ao fundador do Império, enquanto os republicanos nele viam a manobra subreptícia para preparar e assegurar o advento do terceiro reinado nas mãos da princesa herdeira do trono.

Data daí, diga-se de passagem, o culto a Tiradentes como "verdadeiro" herói de nossa independência, herói republicano por convenção, acima de qualquer outro: é o que desde então passou a ser ensinado nas escolas. Publicado no Jornal do Commercio, o artigo de Firmino Rodrigues Silva apontava em Pedro I, celebrando-o, inclusive, por haver derrotado a República do Equador em 1824 – uma das tantas revoluções que a República de 89 em busca de legitimidade iria retrospectivamente incorporar à sua própria história. O motor oculto da imensa polêmica, escrevia ele com argúcia, era "chamar às contas e condenar o Segundo Reinado atráves da condenação do Primeiro". Assistindo a inauguração, Pedro II demonstrou-se sensibilizado pelas palavras do jornalista, conforme narrou em suas memórias o barão de Paranapiacaba: "Notei nos lábios do Imperador um sorriso expansivo e vi que dirigia a alguém um cumprimento. Segui a direção do olhar e do aceno e verifiquei ser alvo deles o Senador Firmino Rodrigues Silva, que agradecia, curvando o busto". Naqueles tempos, essas coisas se faziam com discrição e elegância.

Elegância e discrição que o imperador soube manter em face da vulgaridade castrense com que foi expulso do palácio e no obscuro exílio em que viveu os seus últimos anos. Seu fim não foi melancólico, como queria Oliveira Viana, mas teve as fulgurações trágicas de um rei Lear vagando perdido pelas salas e obrigando a obedecer (obedecer!) às ordens prepotentes dos mesmos que até à véspera ainda se ajoelhavam aos seus pés.

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