Obra-prima do teatro brasileiro contemporâneo, o Auto da Compadecida é uma peça mentalmente medieval coletânea de Gil Vicente tanto na matéria quanto nos personagens e no tratamento cênico: para além da dramaturgia convencional, diz Ariano Suassuna, "influência decisiva, mesmo, em mim, é a do próprio Romanceiro Popular no Nordeste, com o qual tive estreito contacto desde a minha infância de menino criado no Sertão do Cariri da Paraíba. Quem quiser tirar a prova disso leia o Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho, o Violeiros do Norte, de Leonardo Mota. Bastam esses dois. O Auto da Compadecida é inteiramente baseado em dois romances e num auto popular publicados por esses dois pesquisadores do Romanceiro, que exerceram, com isso, um papel decisivo na criação de peça" (Ariano Suassuna. Almanaque Armorial. Sel., org. e prefácio Carlos Newton Júnior. Rio: José Olympio, 2008).
Não se trata de uma "influência" de inspiração, mas, praticamente, de transcrições puras e simples: "O primeiro ato do Auto da Compadecida é baseado no folheto O Enterro do Cachorro, folheto do ciclo cômico, satírico e picaresco, publicado por Leonardo Mota sem indicação de autoria. Revelou-me recentemente Evandro Rabelo [...] que o folheto [...] é um fragmento de outro, O Dinheiro, de autoria de Leandro Gomes de Barros. De fato, porém [...] a história do testamento do cachorro [...] é um conto popular de origem moura e passado, com os árabes do norte da África para o Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste [...]. ... os três personagens... são todos originados do folhetim popular citado por Leonardo Mota".
É da natureza das histórias folclóricas pertencerem, desde a origem, ao domínio público, permitindo incontáveis apropriações, inclusive por parte de Ariano Suassuna, cabendo perguntar até que ponto é o "autor" do Auto da Compadecida no que se refere à fabulação, aos personagens e ao estilo propriamente dito. O segundo ato, escreve ele, "é baseado na História do Cavalo Que Defecava Dinheiro, também citado por Leonardo Mota", e assim por diante, citações fragmentárias que sugerem remeter o leitor para o capitulo "A Compadecida e o romanceiro nordestino". Note-se, entretanto, que Ariano Suassuna é escritor culto, com vivo sentimento do estilo literário erudito: "Quanto a mim, confesso que não sou contrário nem à eloqüência, nem aos adjetivos. Tudo depende da força maior ou menor do escritor. Balzac tinha mau gosto, e aquilo que pode ser um defeito nos menores é apenas uma característica a mais a singularizar o Mestre. Por isso, nunca concordei com os que reclamam contra a maneira de escrever de Euclyes da Cunha. A meu ver, aquela era a única linguagem capaz de erguer e forjar o áspero universo do Sertão que ele não apenas via, mas deformava ao recriá-lo em seus arrebatos de visionário, tão semelhantes aos que descreve em Antônio Conselheiro, deformando e recriando também o Profeta a ponto de transformá-lo num personagem".
Eis o que não conseguem perceber os eruditos que se referem à "falsa ciência" que era a sua, sem notar que era a "verdadeira ciência" do tempo anacronismo que persiste como verdade aceita e indestrutível. Num rasgo de gênio, Euclides da Cunha empregou o plural no título do livro, sendo, ao contrário, habitual que apareça no singular em numerosos outros (como, por exemplo, no de Guimarães Rosa). Na verdade, ou na realidade, há, pelo menos, dois sertões, conforme Suassuna acentua em diversos dos trabalhos aqui reunidos, abrindo caminho para releituras fundamentais: Gilberto Freyre, por exemplo, "é homem da zona do açúcar, visceralmente ligado as formas, cores, coisas de sua região, enquanto eu sou sertanejo da civilização do couro".
Pensou-se, por muito tempo, que "o Sertão era toda a zona do interior fosse úmida e de Mata, ou seca e de Caatinga. É isso que ainda hoje, sem grande erro, permite aos menos avisados sobre o Brasil confundir, por exemplo, o Sertão de Guimarães Rosa com o Sertão de Euclydes da Cunha. É que, apesar das diferenças surgidas depois e que caracterizam muito bem a Mata úmida e a Caatinga pedregosa e agreste, existe também entre as duas uma semelhança profunda que vem da comum origem rural [...]".
Tudo isso ligado, claro está, á ideologia neomedieval e á nostalgia aristocratizante que acabaram por confluir no Movimento Armorial nestes últimos anos identificado com Ariano Suassuna. É qualquer coisa como o Felibrige francês, um e outro destinados a ficar na história intelectual como meras curiosidades sem maiores conseqüências. Mas, em Ariano Suassuna resultou no grande romance que é A Pedra do Reino, canção de gesta fundada, aliás, nas mesmas idealizações do passado.



