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Wilson Martins

O rei cidadão

"(D. Pedro II) Estava à frente do seu tempo, assim como, em muitos casos, estamos atrás do nosso e dele mesmo".

Pela "abrangência e riqueza das fontes", escreve José Murilo de Carvalho, a História de dom Pedro II (1938/1977) por Heitor Lyra é "a melhor de todas", pois o autor "teve acesso pleno ao arquivo particular de d. Pedro II, guardado no castelo d’Eu sob os cuidados do primogênito da princesa Isabel, d. Pedro de Alcântara" (D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007). Aquela é um dos painéis de nossa vida política durante o Império, simétrico e complementar ao de Joaquim Nabuco sobre o estadistas que também o configuraram. Dois livros que devem ser abertos lado a lado, para a leitura simultânea e complementar se quisermos compreender não só os mecanismos do sistema, mas também o gabarito das personalidades envolvidas.

Em sua simplicidade factual, o de José Murilo de Carvalho é uma excelente introdução à matéria, pequena obra-prima de síntese implicando a prévia depuração das complexidades reais ou fictícias em favor do essencial. Aqui temos Pedro II, como no verso do poeta, tal qual a Eternidade o transformou. Foi herói civilizador em todos os sentidos da palavra, a começar por ter feito da educação o seu programa político: "Boa parcela das pensões correspondia ao que hoje se chama de bolsa de estudos. Muitos brasileiros estudaram no país e no exterior à custa do bolsinho imperial. D. Pedro fazia o que hoje fazem os órgãos do governo que financiam bolsas de estudo, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Durante o Segundo Reinado, 151 bolsistas obtiveram pensões, 41 deles para estudar no exterior. No Brasil, foram 65 os pensionistas do ensino básico e médio, dos quais quinze eram mulheres. Os pensionistas no exterior recebiam ajuda para viagem, livros e enxoval. Em contrapartida, tinham de prestar contas trimestrais de seu aproveitamento e assumir o compromisso de regressar ao país no final dos estudos".

As pensões para o ensino superior "cobriam diversas especialidades, com predominância da pintura, música e engenharia, advocacia e medicina. Destacaram-se entre os beneficiados o advogado Perdigão Malheiros, que escreveu um importante livro sobre a escravidão no Brasil, o pintor Pedro Américo ... o engenheiro Guilherme Schüch Capanema [...]. As dívidas dele com a mordomia chegaram a duzentos contos. Na pintura, salientaram-se ainda o excelente Almeida Júnior e Pedro Weingartner; na música, Henrique Oswald. Houve duas bolsistas mulheres. Uma delas, Maria Augusta Generoso Estrela, foi enviada a Nova York para estudar medicina. Não se sabe se regressou ao país, como queria o imperador".

Não é possível pôr em dúvida o genuíno interesse do imperador pelo cultivo e promoção da cultura, diz ainda José Murilo de Carvalho: "Doou 100 mil francos para a criação do Instituto Pasteur [de Paris] e colaborou financeiramente para a expedição de Agassiz [...] Concedeu pensão à família do ator João Caetano, financiou a publicação de obras de Gonçalves Dias, e da Confederação dos Tamoios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães [...]. Fundou a Escola de Minas de Ouro Preto, convidando professores franceses para organizá-la", etc., etc., numa lista que o dignifica como dignifica o Brasil, tanto mais que tudo isso, como fica dito, era pago por sua dotação pessoal, o famoso "bolsinho", assim como corriam por sua conta as viagens ao exterior.

Não são apenas essas as lições que deixou para os presidentes republicanos e seus parlamentos: "Perguntando-lhe o presidente da Câmara, visconde de Camaragibe, como se poderia obter mais trabalho de sua Casa, respondeu que ‘trabalhassem como outros faziam, oito e mais horas por dia, de manhã e à tarde’, princípio que vale para todos os poderes, ainda hoje e hoje mais do que nunca. Quanto à magistratura, parecia dirigir-se aos nossos dias: sua primeira necessidade "é a responsabilidade eficaz, e que enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguiria esse fim". Já naquele tempo?

No que se refere à imprensa, eis o que esse monarca vilipendiado escrevia no seu diário íntimo, isto é, em documento não destinado à divulgação: "a imprensa se combate com a imprensa", levando José Murilo de Carvalho a concluir que "a imprensa nunca foi tão livre no Brasil como no seu reinado", pagando, aliás, alto custo por isso: ele, Isabel e o conde d’Eu eram vítimas constantes de ataques de jornais e outras publicações. Se anteriormente era criticado pelo excesso de poder pessoal, tornara-se Pedro Banana no fim do seu reinado.

Sob uma constituição clerical e num país beato, defendia o laicismo das instituições, rejeitava a supremacia da Igreja sobre o Estado, apoiando o casamento civil, os registros civis de nascimento e morte e a secularização dos cemitérios, assim como era contra o ensino religioso nas escolas públicas. Obstinado abolicionista desde, pelo menos, 1864, enfrentou a resistência não menos obstinada dos senhores deputados e senadores. Estava à frente do seu tempo, assim como, em muitos casos, estamos atrás do nosso e dele mesmo.

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