• Carregando...
Ruy Castro empresta o protagonista de Memórias de um Sargento de Milícias, para utilizá-lo em Era no Tempo do Rei: um Romance da Chegada da Corte | Divulgação
Ruy Castro empresta o protagonista de Memórias de um Sargento de Milícias, para utilizá-lo em Era no Tempo do Rei: um Romance da Chegada da Corte| Foto: Divulgação

Tendo regressado das guerras do Sul, o sargento de milícias Antônio César Ramos passava as horas contando ao jornalista Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) as suas lembranças do "tempo do rei", daí resultando os folhetins do Correio Mercantil (1852-1853) reunidos em volume com o título de Memórias de um Sargento de Milícias. Criou-se, com isso, o falso problema de autoria que tem surpreendido os historiadores menos avisados. Nos Aspectos da Literatura Brasileira, Mário de Andrade lembra que "Melo Morais Filho conheceu este sargento quando, já desengajado, era diretor de escritório no Diário do Rio, após ter exercido estas mesmas funções no Correio Mercantil. Português de nascimento chamava-se Antônio César Ramos e viera como soldado para a guerra da Cisplatina em 1817, no Regimento de Bragança. Depois chegara a sargento de milícias, ainda na Colônia, sob o mando do Major Vidigal. Dando baixa, se passara para o emprego nos jornais. Conheceu e prezava muito o Maneco Almeida, o qual, antes de subir para a redação, procurava o ex-sargento, puxava-lhe pela língua, armazenava casos e costumes do bom tempo antigo, para passá-los nos seus folhetins.

Tudo isto, conclui Mário de Andrade, "o velho César relatara a Melo Morais Filho, que, por sua vez, tudo reporta nos Fatos e Memórias. E assim ficamos sabendo que Manuel Antônio de Almeida, além de leituras possíveis [?], tinha um ótimo informante dos casos de polícia e gente sem casta ou sem lei que expõe no seu romance". O título diz, pois, exatamente o que devia dizer, reconhecimento tácito de co-autoria: nascido em 1831, Manuel Antônio de Almeida não poderia ter na memória as memórias "do tempo do rei". Por outro lado, não há nenhum indício das leituras preparatórias que Mário de Andrade, generosa mas gratuitamente, lhe atribui.

É, aliás, uma fileira de pseudópodes, se pensarmos que, antes do romance de Ruy Castro (Era no Tempo do Rei: um Romance da Chegada da Corte. Rio: Objetiva, 2007), já Paulinho da Viola havia composto o samba-enredo Memórias de um Sargento de Milícias, em 1966. A picaresca é gênero a ser escrito em plano de alta qualidade literária, não em termos chocarreiros, sendo também, literatura de tipos psicológicos, a que os clássicos acrescentavam o condimento moralizante. Pode-se pensar que o grande mestre do gênero chamou-se Alexandre Dumas, "grande mestre" de quem os teóricos raramente se lembram, medusados pelos nomes de Mateo Alemán e do Lazarillo de Tormes, para nada dizer das Novelas Exemplares, de Cervantes.

Nas primeiras páginas, Ruy Castro sucumbe a uma influência excessiva e até constrangedora de Manuel Antônio de Almeida, libertando-se dela logo depois, quando tudo parecia perdido, com a atransformação em romance de aventuras à maneira, justamente, de Alexandre Dumas e, é preciso acrescentar, no mesmo nível de qualidade e brio narrativo, com a vantagem, neste caso, de ser o autor do seu próprio livro. Ignorando a crítica aos costumes eclesiástico da época, introduz em seu lugar as intrigas da corte e a canalha das ruas, acrescentando ao pícaro plebeu o pícaro aristocrático: "O garoto da olhos pretos, nariz de águia e parte ídem, que não gostava de ser contrariado, era um diabrete de fazer inveja ao cujo. Os anéis de cabelos fartos e também pretos mal escondiam os chifrinhos que brotavam da cabeça grande e senhorialmente esculpida. O casco fendido era disfarçado pelas botas de montaria, mas o volume do rabo em ponta, enrodilhado, às vezes se revelava nos fundilhos das calças justas e presas no meio das canelas".

Trata-se do infante d. Pedro, futuro imperador, que por alguns capítulos será aliado e companheiro do não menos endiabrado Leonardo. Um e outro estão do "lado do bem", quase transformados em Mosqueteiros do Rei. Rei esse que na sua juventude tresloucada foi amante da famosa Bárbara dos Prazeres, agora residindo no Rio, já decrépita, mas dona de valiosas joias recebidas de presente. Nos delírios de senilidade ela sempre aludia às famosas joias, entre elas uma famosa tiara de brilhantes em que ninguém acreditava e que realmente existia. A certa altura, o livro se transforma em romance de capa e espada, desenvolvimento inesperado para uma novela picaresca.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]