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wilson martins

Relendo Marques Rebelo

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Releio, 40 anos depois, A Guerra Está em Nós (terceira parte da ambiciosa trilogia com que Mar­­ques Rebelo (1907-1973) enfrentou o desafio do romance e dos grande romance, já então como um dos maiores contistas brasileiros (A Guerra Está em Nós. Trilogia do Espelho Partido, livro 3. Rio: José Olympio, 2009).

Este último não estava contido nem em Oscarina, nem nas suas outras obras de ficção, e, sendo possível apontar, aqui e ali, na literatura universal certos romances que se lhe assemelham, a verdade é que ele inventou uma técnica de possibilidades praticamente infinitas e de grande força sugestiva. Sua carreira literária ficou dividida em duas partes: não seria injusto considerar todos os livros anteriores como uma forma de preparação espiritual e técnica, involuntária mas coerente, para o maciço romanesco que se tornou O Espelho Partido. Com esse romance, ele entrou nos domínios da grandeza artística: ele era, antes, menos um escritor que uma figura da vida literária, era, sem sombra de dúvida, um escritor menor, embora de fortes qualidades, qualquer coisa como um epígono da geração modernista. Sua celebridade decorria muito mais da gesta pessoal dos seus atos e palavras, que da obra realizada. Com O Espelho Partido, estamos diante de um homem e de um escritor completamente diversos. Sem nada perder de sua ironia e do seu sarcasmo, da sua vivacidade de expressão e de sua extraordinária capacidade de surpreender ao vivo os traços peculiares dos personagens, ele adquiriu uma gravidade e uma densidade inesperadas, como se tivesse compreendido de repente que a comédia humana é comédia, mas é também humana.

Assim, enquanto nomes gloriosos do Modernismo e dos anos seguintes começaram a desfazer-se na névoa impenetrável do esquecimento, enquanto tantas tentativas ambiciosas se revelaram absolutamente vazias de conteúdo e despidas de significação, reservava o destino a Marques Rebelo a tarefa de ultrapassar as escolas literárias pela assimilação do que têm ou do que tiveram de criador. Se, na década de 30, o Modernismo produziu com o romance do Nordeste a ficção que estava mais imediatamente e mais restritamente no seu programa, pode-se pensar que o amadurecimento da inteligência literária iria conduzir, com a superação do Movimento, ao verdadeiro romance moderno, quero dizer, ao romance que resulta de um estado de espírito, de uma idade da inteligência criadora, inseparáveis dos dias que corriam enquanto Marques Rebelo escrevia.

A inteligência será o primeiro sinal do romancista, O Espelho Partido sendo, antes de mais nada, um "romance de intelectual", cujo tema é a vida de um intelectual nos meios intelectuais do Rio Janeiro. Entretanto, é mais o romance da vida literária do que, propriamente, o romance da literatura. A comédia humana é aqui a comédia literária. O que não exclui, naturalmente, nem os dramas, nem as tragédias do cotidiano. Mesmo os ridículos das vaidades e das mistificações, o lado mesquinho das existências e dos acontecimentos, o avesso do tecido brilhante e vistoso, são, em certo sentido, o preço que se paga por todas as grandezas.

Situando a ação na fronteira indecisa em que o romance é também diário, ou em que o diário se transforma em romance, Marques Rebelo faz-nos sentir por assim dizer materialmente as ligações confusas e misteriosas entre a literatura e a vida. Diga­­mos, a esse propósito, que o seu grande achado foi o de "ficcionalizar" quase todos os personagens reais, reservado apenas a uns poucos o privilégio de serem citados por seus próprios nomes e sob os traços de suas figuras concretas. Por que, realmente, atribuir pseudônimos a tal poeta conhecido, a tal crítico influente, se, na maior parte dos casos, podemos reconhecê-los sem hesitação? A verdade é que essa técnica se revela como uma necessidade do ro­­mance. Se sucumbisse apenas à ten­­tação satírica, o autor teria destruído o caráter exemplar que é a primeira lei não escrita do gênero. Não é a biografia efetiva o que importa, mas, digamos, as perspectivas biográficas. O livro se desenvolve em três planos, todos eles mantendo com a realidade as mesmas relações deliberadamente ambíguas.

Rebelo cometeu, entretanto, um "erro insanável", observou Josué Montello, "quando deu ao seu diário o tom de um romance em vários volumes. O romance não chegou a ser romance. O diário deixou de ser diário. Este, bem escrito como é, com os nomes verdadeiros no seu lugar, teria a força de um testemunho. Não lhe faltou o vigor e a intensidade lírica [...] em compensação lhe so­­brou a graça corrosiva e o vigor caricatural na vasta galeria de retratos inconfundíveis que ele próprio escureceu quando deu o tom de romance ao diário que teria sido a sua obra-prima" (Diá­­rio da Noite Iluminada, 30/10/1983).

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