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Origens

Com raízes na escravidão, faxineira durará décadas

Necessidade de ajuda em casa está intrinsecamente ligada à falta de políticas públicas e de apoio à família

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Atire o primeiro pano de chão quem mora num lar onde todos contribuem igualmente com a limpeza – só se forem descendentes de suecos ou dinamarqueses. De acordo com a professora de Economia da Universidade Federal Fluminense Hildete Pereira de Melo, que pesquisa o trabalho doméstico há tempos, os povos escandinavos são praticamente o único exemplo de divisão igualitária da faxina, em países onde, lá sim, é difícil encontrar empregadas.

A história ajuda a explicar a origem do nosso comportamento classista em relação ao asseio. Os países da América Latina concordam em uníssono que trabalho manual e braçal é algo a ser transferido o mais rápido possível para outra pessoa.

"Isso tem a ver com as raízes ibéricas, particularmente com as portuguesas, em que a lógica é a da repulsa ao trabalho", explica o professor de História do Direito na Universidade Federal do Paraná Luís Fernando Lopes Pereira. Esse pensamento perdurou por aqui até o século 19, chegando ao ponto de se proibir pessoas que houvessem pegado no batente de exercer certos cargos de governança – enquanto países de tradição protestante, pelo contrário, já valorizavam muito o trabalho e os frutos dele.

Por aqui, o trabalho doméstico confundiu-se com a exploração de escravos por um bom tempo, inclusive após a abolição, no início do século 20. Somente com os governos de Getúlio Vargas essas mulheres ganharam alguns direitos, mas precários – uma lei de 1949 instituiu o repouso semanal remunerado do trabalhador brasileiro, mas excluiu a empregada doméstica.

Essa exclusão só seria revogada seis anos atrás, após um longo processo iniciado em 1972, quando a legislação começou a contemplar o trabalho doméstico. Foram leis que deixaram diversas lacunas, preenchidas aos poucos a partir da última década, quando surgiu a possibilidade de o empregador recolher FGTS ao trabalhador – que passa a ter direito ao seguro-desemprego – e de deduzir o INSS recolhido ao trabalhador doméstico do Imposto de Renda.

Mas essa facilidade não tem surtido o efeito desejado de estímulo à formalização: 75% das empregadas ainda trabalham sem carteira assinada.

Salário e estigma

Enquanto a legislação deixa a desejar, o próprio mercado de trabalho está se modificando. O salário mínimo dobrou nos últimos dez anos, levando a um encarecimento que, em certa medida, valoriza o passe da faxineira. Mas o estigma da profissão permanece no negativo, e é natural que os filhos das empregadas de hoje busquem outras fontes de renda.

"Como é uma ocupação que pratica baixos salários e existe discriminação, quando há novas oportunidades, as pessoas migram, ainda que de maneira precária, para vagas da indústria, serviço e comércio", diz o economista do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos do Paraná Cid Cordeiro.

"As filhas das empregadas de hoje tiveram mobilidade social, e já não têm como destino o emprego doméstico, sobretudo no Sul e no Sudeste", confirma a pesquisadora Hildete.

O problema é que a cultura patriarcal não se resume às quatro paredes das residências. Se as famílias de classe média alta "já se organizam contando com esse tipo de trabalho", como aponta a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Natália Fontoura, as próprias políticas públicas contam com o trabalho doméstico.

"Temos muita falta de creche e escola integral, e com isso as mulheres estão muito dependentes de outra mulher que as substituam. E as prefeituras fogem desse problema como o diabo da cruz", desabafa Hildete.

A dependência do trabalho doméstico está atrelada a uma característica ainda mais enraizada, que é a desigualdade. "Quanto mais desigual, mais forte a propensão de uma sociedade depender do emprego doméstico", sentencia a professora. "Só nos deparamos com os mais pobres nos sinaleiros – e dentro de nossas casas", lembra Natália.

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