• Carregando...

Logo na entrada da 27.ª Bienal de São Paulo, em cartaz até 17 de dezembro no Parque do Ibirapuera, o visitante se depara com um jardim de grama artificial, cercado de grades e arames farpados, onde a sul-africana Jane Alexander colocou uma de suas esculturas híbridas de bicho e homem. A obra ganha um componente inusitado (e talvez involuntário) por conta da presença intimidadora de guardas uniformizados, contratados para garantir a segurança do evento, mas que parecem vigiar a imensa jaula criada pela artista. É como se eles fizessem parte da impactante instalação.

O trabalho de Jane Alexander, intitulado "Congo Honeymoon" (Lua-de-Mel no Congo), está entre os mais "óbvios" para o olhar não-iniciado, por evocar símbolos de controle e tirania do passado, como os campos de concentração nazistas, e de vigilância e proteção bastante contemporâneos, aos moldes do presídios de segurança máxima e dos condomínios fechados. Em todos os casos, o ser humano, enjaulado e/ou protegido, surge bestializado.

O obra de Alexander também ganha um sentido irônico – e até certo ponto contraditório – quando se pensa que o tema da Bienal é "Como Viver Junto". Assim como a instalação, boa parte do que está exposto no primeiro dos quatro andares da mostra remete ao estado de isolamento, alienação e segregação ao qual bilhões de terráqueos estão submetidos de uma forma ou de outra hoje em dia.

Repulsa

Outra instalação que ao mesmo tempo choca, atrai e gera repulsa é "Restore Now" (Restabelecer Agora, em português), obra do suiço Thomas Hirschhorn, conhecido por suas referências à filosofia, política e cultura pop para falar das contradições da contemporaneidade. Trata-se de uma construção caótica e feita com materiais baratos e efêmeros como papel alumínio, papelão, fita adesiva, compensado e páginas de revistas ou jornais usados. Tudo parece tosco, provisório – como o próprio mundo onde vivemos. Nela, o artista também coloca livros, manifestos e escritos seus, mapas e uma série de outros objetos, como ferramentas. Entre esses artefatos, fotos de corpos mutilados em acidentes, guerras e crimes – vale lembrar que antes de "adentrar" a obra, o visitante é alertado a respeito do teor de crueza dessas imagens. Toda essa profusão de símbolos causa extremo desconforto, mas o impacto vale a pena e prepara o público para uma jornada e tanto.

Convívio

O tema "Como Viver Junto", escolhido pela curadora Lisette Lagnado, oferece ao visitante da Bienal uma chave interpretativa para apreciar cada obra individualmente e também para apreciar o conjunto da exposição. Como já foi dito neste texto, no andar térreo tomamos contato com artistas que denunciam a segregação, o apartheid social, o isolamento que toma conta dos mais variados centros urbanos do planeta, de Brasília ao Cairo.

Duas obras nesse primeiro piso, entretanto, anunciam uma certa mudança gradual no tom da Bienal à medida em que se tem acesso aos andares superiores: a chuva de guarda-chuvas pendurados pelo brasileiro Marepe e, principalmente, a pirâmide de bolhas infláveis do argentino Tomás Saraceno. Essa instalação, uma das mais interativas de toda a mostra, conduz, por meio de uma escada de corda, aos diferentes níveis tanto da própria obra como da Bienal, ainda que o visitante fique encapsulado pela bolha plástica.

Nos andares superiores, os subtemas da separação, do isolamento e do confronto, embora nunca sejam totalmente abandonados, vão cedendo lugar a outras abordagens. As relações entre homem e natureza, entre diversas tradições culturais, entre arte erudita e popular, entre indústria e artesanato são abordadas nas obras de diversos artistas de todos os continentes, sem cair em abstrações conceituais. E sempre de forma instigante e provocativa.

Imagens

A fotografia tem forte presença na Bienal em trabalhos de grande impacto, como a série de imagens do também sul-africano Pieter Hugo, mostrando homens do povo que trazem nas mãos ameaçadoras hienas e macacos acorrentados como bichos de estimação. Também impressionam as belas – e algo patéticas – fotos do artista árabe, radicado em Israel, Ahlam Shibli, que apresentam homossexuais e transexuais de fé muçulmana que deixam seus países de origem para poder expressar livremente sua sexualidade, assumindo muitas vezes os papéis de estereótipos da cultura oriental, como odaliscas.

Outro ponto alto, agora no âmbito da arte popular, é o maravilhoso painel de recortes em papel, recolhidos na cidade chinesa de Yanchuan. Em todas essas obras, exemplos de convivência com o arcaico, com o primitivo, com o folclórico e o popular não cessam, ainda que a idéia da alienação social continue presente, mesmo de forma sutil, subliminar. O interessante é que o estranho, o exótico e o popular estão integrados harmoniosamente à arte mais elaborada, codificada, numa das mais belas e instigantes bienais das últimas décadas. Pelo menos para quem a visita.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]