
Nova Iorque - É tentador ver o mais recente trabalho de Francis Ford Coppola o exuberante Tetro, equivalente cinematográfico da fuga numa peça de música erudita, e cujos temas são o amor, a ambivalência e dois irmãos que tentam sair da sombra pesada de um pai dominador, maestro de renome mundial pelas lentes da autobiografia. Mas seria como olhar por lentes embaçadas.
O pai do diretor, Carmine, que morreu em 1991, era um músico bem menos famoso, mais conhecido por alguns dos temas dos filmes de seu filho caçula, incluindo os de O Poderoso Chefão II e Apocalypse Now. O voraz e notável patriarca de Tetro poderia ser até um autorretrato do próprio diretor.
A intensidade da relação entre irmãos é um tema que Coppola já visitou antes nos dois primeiros filmes da série O Poderoso Chefão, com seus fratricídios tanto simbólicos quanto literais, e no autobiográfico O Selvagem da Motocicleta, dedicado ao irmão mais velho do diretor, August.
Tetro se concentra na relação entre um rapaz de 17 anos, Bennie (o ótimo estreante Alden Ehrenreich) e seu irmão bem mais velho, o angustiado personagem-título do filme (Vincent Gallo, exemplarmente taciturno), um tipo cosmopolita que trocou a terra natal terra do patriarca por Buenos Aires e uma vida boêmia à moda antiga, pontuada por manhãs na cama, idílios em cafés, exóticos personagens e prazeres eróticos. Esses dois últimos anseios parecem ser preenchidos por sua parceira e amante Miranda (Maribel Verdú), uma presença indistinta e calorosa que encarna a sensualidade e os cuidados maternos.
Invasão
Bennie irrompe no mundo de Tetro como se invadisse um sonho, que Coppola constrói com grande beleza visual. O filme foi rodado em widescreen e vídeo digital, num chamativo preto-e-branco com toques de cor a cargo de Mihai Malaimare Jr., diretor de fotografia que já havia trabalhado no lançamento anterior de Coppola, Juventude Sem Juventude. (O Selvagem da Motocicleta também foi feito em preto-e-branco com pinceladas de cor.)
Coppola tem citado os filmes de Elia Kazan, Sindicato de Ladrões entre eles, como uma das inspirações para o visual arrebatador e cheio de contrastes do novo filme referência que parece ecoar também na tensão crescente entre os dois irmãos que, em alguns momentos, faz lembrar a trama de Vidas Amargas, outro trabalho de Kazan. Enquanto filmava O Poderoso Chefão, vale lembrar, Coppola teve pesadelos em que era substituído por Kazan na direção da trilogia.
A abordagem edipiana em Tetro fica clara no momento em que Bennie entra no apartamento do irmão, onde uma foto de Robert Mitchum em O Mensageiro do Diabo as mãos tatuadas com as palavras "amor" e "ódio" resplandece numa das paredes. O tema da família ecoa até mesmo aqui; nesse clássico um tanto excêntrico de 1955, Mitchum interpreta um pastor que persegue os dois filhos da ex-mulher que ele assassinara.
Sanidade
O dano causado pelo patriarca no filme de Coppola é um pouco mais sutil, obra de um homem, Carlo Tetrocini (Klaus Maria Brandauer), que frustrou os sonhos do próprio irmão, também compositor (o próprio Brandauer, caracterizado com eficiência), e destruiu a sanidade do filho mais velho. Tetro pode ter renegado o pai, mas não consegue se livrar dele no nome e em espírito.
Assim, muito a exemplo do que ocorre com o próprio passado cinematográfico de Coppola, o pai está presente. Hollywood assombra Tetro assim como Carlo o faz com os filhos. Dispensando o empurrãozinho dos estúdios que a maioria dos filmes, hoje, se obriga a receber, e filmando a partir de um roteiro original o primeiro que produz desde A Conversação (1974) , Coppola passeia por seus temas enquanto Bennie e Tetro flanam pela cidade.
Tetro, ficamos sabendo, é um gênio, ou teria sido um, caso algum dia houvesse concluído sua obra um detalhe que é trágico e engraçado, embora não fique claro se a intenção é mesmo de que seja ambos. Um dos muitos temas a aflorar, de forma elíptica mas insistente, é a pressão da família sobre a genialidade de um de seus membros, ou talvez vice-versa, um tópico que marca a saga familiar dos Coppola.
Artificialidade
Um esboço de história emerge, mas, na maior parte do tempo, o que predomina são atmosferas, sensações, longos silêncios que devassam até a mais recôndita das intimidades. A sensação opressiva se deve, em parte, à escuridão das tomadas e à artificialidade intencional e por vezes deprimente da edição de som de Walter Murch, parceria de longa data de Coppola, além de uma espécie de guru do diretor nessa área.
Decididamente não-realista ou, melhor dizendo, fora dos padrões hollywoodianos , o áudio do filme acrescenta muito à sua atmosfera irreal, à sensação de que se assiste (ou se vivencia) o sonho ou o pesadelo de outra pessoa. Cada palavra dos diálogos ou um simples arrastar de cadeiras soa como se tivesse sido registrado separadamente, e os ruídos ambientes normais o recheio sonoro que dá aos filmes a centelha de uma vida artificial estão ausentes de um modo provocativo.
Patagônia
A vida encontra a arte que encontra a família que encontra o cinema em Tetro, às vezes de forma poderosa, outras, de forma obscura. Repleto de incidentes (uma perna quebrada no momento exato, uma produção do Fausto) e desvios (uma crítica influente chamada Alone, na interpretação marcada pelo sorriso inescrutável de Carmen Maura), e pela paisagem de picos gloriosos nas altas montanhas da Patagônia, o filme mostra Coppola indo além das convenções do cinemão que, em compasso alternado, significaram liberdade ou prisão em suas mais de quatro décadas como cineasta.
Como em Juventude Sem Juventude, o novo trabalho parece representar uma transição, mas não deixa de ser um filme inspirado, a criação de um diretor que, aos 70 anos, se lançou numa nova aventura que tem demandado de seu público mais do que parte dele parece disposta a dar. O que, em si, é sinal de um renascimento artístico vigoroso.






