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Personagem

Um olhar estrangeiro

São muitos os atuais cultores do gênero que valeria a pena mencionar. Mas um deles, em particular, parece ter tomado como missão justamente a apologia dessa figura já mítica da crônica – e da própria modernidade, tema aliás da maioria de seus textos – que é o indivíduo, a "gente como a gente", o "homem comum", enfim. O cronista em questão é o psicanalista italiano Contardo Calligaris, que há nove anos mantém uma coluna na Folha de S. Paulo, publicada às quintas-feiras.

É um estrangeiro, curiosamente, e do posto de observação privilegiado de quem se debruça cotidianamente sobre o divã das subjetividades, quem parece ensinar aos inventores da crônica moderna, os brasileiros: "Minha ambição é apenas (mas já é muito) que, ao dialogar comigo (concordando ou protestando, tanto faz), o leitor tome o tempo necessário para descobrir ou inventar uma espessura e uma intensidade possíveis de sua própria experiência", declara Calligaris na introdução à coletânea Terra de Ninguém. "No fundo, escrevo crônicas na esperança de que, ao lê-las, os leitores sintam vontade de tornar-se cronistas de suas próprias vidas." (CS)

Ficou famoso o veredicto de Manuel Bandeira, um de nossos maiores poetas, segundo o qual Rubem Braga, por sua vez tido como nosso maior cronista, "é sempre bom, e quando não tem assunto então é ótimo". Bandeira, ele próprio grande cultor desse saboroso gênero em que a prosa do poeta não via jeito senão poetizar-se também, torcia como louco por um Braga sem assunto: "Aí começa ele com o puxa-puxa, em que espreme na crônica as gotas de certa inefável poesia que é só dele", escreveu.

Poesia? Mas há quem a confunda com o conto – e sem necessariamente dar vantagem a este. Há, ainda, os que insistem em cooptá-la para o lado do jornalismo, como uma espécie mais nobre de observação do cotidiano, diferente da "reles" reportagem. E finalmente há aqueles que, ao contrário, a acusam de ser "um gênero menor", talvez por despeito: sua popularidade é imbatível na disputa com a prosa declaradamente ficcional (conto, novela, romance), e isso vale especialmente para o Brasil – tratar-se-ia, pois, de gênero genuinamente nacional (leia artigo de José Castello na página 3)? E, afinal, crônicas são fato ou ficção?

"São uma espécie de janela dos fatos; pela crônica, respiramos um pouco da massa opaca de acontecimentos e também não nos entregamos à lógica pura do comentário objetivo. É uma boa conversa, com um pé no jornalismo e outro na literatura – e entre eles, o humor de quem vê o mundo à solta", define o romancista Cristovão Tezza, recém-convertido a ela. Mas antes pondera: "Fácil na aparência, volátil por natureza, de vocação camaleônica e de alta circulação, a crônica é um gênero que parece sempre escapar de definições teóricas", aperfeiçoando ele próprio, porém, a definição fugidia. Tezza começou a vida de cronista autoproclamando-se "Blogueiro de papel", título da crônica com que estreou o espaço que ocupa às terças-feiras na Gazeta do Povo. Belo achado: de fato, o gênero se encaixa à perfeição nessa espécie de revolução cognitiva que é a web, com seus novíssimos modos de ler.

Conforme observa outro escritor, o argentino Ricardo Piglia, sobre a vantagem do texto curto na era digital: "(...) é provável que o conto tenha uma dinâmica mais conectada com essa mecânica de viragem rápida da significação que é oferecida por meios como a internet. Sobretudo quando se leva em consideração a cena que rodeia a leitura: é muito comum hoje que alguém leia enquanto a televisão está ligada e se está esperando e-mails, por exemplo". Piglia, para quem também "poesia e internet têm tudo a ver", descreve uma situação que é igualmente muito familiar ao leitor da crônica tradicional, aquela dos jornais e das revistas: entre uma notícia e outra, ali está uma pequena dose do que o crítico e professor Antonio Candido, por sua vez, a propósito de outro cronista-poeta, Carlos Drummond de Andrade, definiu como "uma poesia diferente, muito peculiar e acolhedora".

No passado, cronistas eram os historiadores do rei. Tratava-se, então, de tentar "domesticar o tempo", conforme lembra o ensaísta Leandro Konder – uma luta fadada à derrota contra o deus grego Cronos, daí o nome "crônica". Ou seja, Pero Vaz de Caminha e Fernão Lopes, para citar apenas dois dos mais destacados escribas reais do reino que nos diz respeito, o de Portugal, relatavam as ações dos monarcas na tentativa de eternizá-los. Porém, lembra Konder, "Cronos ri de nós. (...) Nosso conceito de eternidade leva-o às gargalhadas". O gênero resultou efêmero por natureza e vocação.

Mas esses cronistas pioneiros já exibiam, em germe, o que a partir do século 19 será o "princípio básico da crônica", segundo outro teórico do assunto, Jorge de Sá: "registrar o circunstancial". Evidente que as circunstâncias de viajantes como Caminha, porque extraordinárias, geraram o interesse inicial pelo que relatavam os cronistas. É quando se desenvolvem as cidades e, nelas, os jornais, porém, que a crônica – então chamada de folhetim – se torna mais ou menos o que é hoje. Aqui, o ponto de vista do aventureiro é substituído pela observação perspicaz do intelectual urbano: no Brasil, José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo e, sempre acima dos outros, Machado de Assis. "Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica", comentou numa das suas próprias, "mas há toda probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas" ("O nascimento da crônica", 1877).

No século 20, sucedem-se dois divisores de águas na crônica brasileira, que já ali se confunde com um modo de falar genuinamente carioca – a famosa "conversa fiada" a que certamente muito se dedicavam as duas vizinhas de Machado. O primeiro marco é João do Rio, o flâneur da capital que se moderniza. Modernista antes dos modernistas, "antropofagiava" de americanismos à gíria da malandragem, e era ainda uma espécie de repórter-escritor, engajado nos fatos que deveria apenas observar, antecipando o chamado "jornalismo literário" – aliás, ainda hoje chamado "crônica" no mundo de língua espanhola, por exemplo. O segundo e definitivo marco na crônica brasileira, e voltamos a ele, é Rubem Braga, a essa altura – já corria a década de 1930 – herdeiro de uma sólida tradição que prevalece até hoje e manda juntar ficção e lirismo para enfocar o homem comum.

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