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Representação pejorativa de judeu que, em fins do século 19, eram apontados na Europa como como conspiradores e apátridas, em um prenúncio da tragédia do Holocausto | Reprodução
Representação pejorativa de judeu que, em fins do século 19, eram apontados na Europa como como conspiradores e apátridas, em um prenúncio da tragédia do Holocausto| Foto: Reprodução

Trecho

"Com o fim da guerra, Simonini retomou seu trabalho normal [de falsário]. Por sorte, com todas as mortes que haviam acontecido, os problemas de herança estavam na ordem do dia; muitos caídos ainda jovens sobre as barricadas ou diante delas ainda não tinham pensado em fazer testamento, e Simonini ficou assoberbado de trabalho – e repleto de prebendas. Como era bela a paz, depois de um banho sacrifical!"

Trecho de O Cemitério de Praga, de Umberto Eco

Há uma espécie de "lei de Murphy" correndo por aí que diz o seguinte: as pessoas acreditam em tudo aquilo que você sussurrar no ouvido delas. Temos mesmo uma tendência a achar que todo segredo é verdadeiro. O que faz as conspirações todas, mesmo as falsas, serem irresistíveis para a curiosidade humana. Há muita literatura que vive disso: imagine, por exemplo, se boa parte da obra de Leonardo da Vinci contivesse um código disfarçado...

Umberto Eco faz o caminho contrário em seu mais novo romance, O Cemitério de Praga. Ao invés de viver de nossa condição de curiosos e mexeriqueiros, como faz Dan Brown, por exemplo, em seu Código Da Vinci, tenta mostrar como ela é perigosa. E conta uma das mais impressionantes histórias de teoria da conspiração que já existiram. Aquela que põe as culpas do mundo no povo judeu.

Durante séculos a Europa colocou a origem de todos os males nas costas dos judeus. Eco situa sua trama na virada do século 19 para o 20, quando o clima de antissemitismo era forte como sempre – e já se preparava o ambiente para o extermínio de milhões que aconteceria na década de 1940. Hitler não foi algo à parte: foi o ponto culminante de uma tragédia anunciada.

Em uma das cenas do livro, um jornalista chamado Édouard Drumont aparece dizendo que tem certeza de que os judeus que estão no exército francês são espiões da Prússia, já que não podem ter amor a pátria alguma. Anda pela redação pedindo a seus subordinados: "Encontrem as provas!" É a típica teoria da conspiração: primeiro, a certeza. Depois, as provas.

O livro desemboca na criação dos famosos "Protocolos dos Sábios de Sião", um panfleto anônimo e mentiroso que atribuía ao povo judeu um plano para dominar o mundo. E que ajudou a criar o clima para o Holocausto mais na frente.

A habilidade de Eco está em colocar um personagem que une essas e outras histórias (de antissemitismo ou não) que realmente ocorreram no período. Simonini, o falsário, está por trás dos documentos que incriminaram Dreyfus (o judeu que é expulso do exército francês depois que as "provas", falsas, claro, são encontradas) e até da origem dos "sábios de Sião".

Simonini sabe da nossa tendência a acreditar em conspirações. E, inspirado num romance de Alexandre Dumas, o Joseph Balsamo, cria um modelo de conspiração. No livro de Dumas, os chefes maçons de vários países se reúnem num lugar deserto para prometer derrubar as monarquias do mundo. Nos textos de Simonini, as reuniões se passam sempre em um cemitério judeu de Praga.

O livro mostra todo o lado perverso dessa nossa sede por saber mais que os outros – principalmente por saber de algo que comprometa terceiros com coisas graves. E mostra até onde isso pode degenerar: além do antissemitismo, missas negras e assassinatos entram na trama.

Pode não ser o romance mais bem acabado de Eco. Ele mesmo se diz frustrado porque toda vez que publica algo já sai alguém dizendo que não é tão bom quanto O Nome da Rosa. (Segundo Eco, o efeito mais relevante de ele publicar um romance é as pessoas pensarem que ainda não leram O Nome da Rosa e saírem atrás do livro antigo, não do novo.) Mas é um livro importante, sobre um belo tema. E a erudição de Eco, assim como sua habilidade para contar histórias, está toda lá. E o talento de narrador, para criar um belo folhetim, também.

Serviço:O Cemitério de Praga, de Umberto Eco. Tradução de Joana Angélica D´Ávila Melo. Record, 480 págs, R$ 49,90. Romance

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