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Torcidas

De onde vem o grito

Possíveis explicações para um fenômeno de massa capaz de balançar estádios e fazer políticos

 | Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo
(Foto: Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo)
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Faltou espaço para José Fiedler. Naquele sábado, 24 de novembro de 2007, Santa Cruz e Coritiba jogavam em Recife pela última rodada da Série B. Aos 47 minutos do segundo tempo, o jogador Henrique Dias fazia o terceiro gol do time paranaense, garantindo o título e confirmando o acesso.

Segundos depois, a 3.300 quilômetros da capital pernambucana, Fiedler corria de um lado para outro dentro de um quarto de hotel em União da Vitória – estava lá para um casamento, pouco lembrado durante aqueles 90 minutos. Saiu descalço. E aos pulos chegou até o estacionamento, quase dopado. "Era como se eu não enxergasse nada."

Às vezes falta voz para Fabiano Machado. O atleticano é diretor de bateria da torcida organizada Os Fanáticos há 14 anos. Vai a todos os jogos, seja dentro ou fora do estado. Diz que a distância não importa. "Quando estou no estádio, meu corpo inteiro arrepia. É a maior paixão que eu tenho na minha vida."

Falta paciência para Allan da Cunha Luz. Sua namorada diz que em dia de jogo ele se transforma. É um durante a semana, e outro quando o Paraná Clube entra em campo. Não puxe conversa com ele durante o jogo. E, se o vir andando de um lado para o outro nas arquibancadas da Vila Capanema, é porque está tudo bem. "O amor pelo meu time é maior do que muitas coisas. As pessoas podem mudar de casa, de namorada, até de sexo. Mas de time não tem como. É algo que foge da nossa compreensão."

O advogado coxa-branca de 29 anos, o hoteleiro atleticano de 33 e o empresário paranista de 27 torcem. São exemplos de uma massa apaixonada que idolatra um clube de futebol. Não importam as cores, a idade tampouco. O Caderno G Ideias de hoje tenta, sob vários aspectos, decifrar esse sentimento, tão à flor da pele nos brasileiros. O caminho mais fácil é a compreensão do próprio objeto dessa adoração: o futebol.

O compositor, ensaísta e professor de Teoria Literária da USP José Miguel Wisnik destrincha a "arte" da bola para facilitar o entendimento do fenômeno. "A indicação é que é um jogo de bola diferente dos outros. Apesar de haver o placar, ele não descreve por inteiro o jogo. Há acontecimentos que não têm uma tradução numérica. É uma narrativa sem palavras que nos ocupa o tempo todo", explica. Wisnik é autor de Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil (Cia. das Letras).

Os gritos e as músicas, as reações da torcida quando há gols – contra ou a favor do seu time, são, para Wisnik, uma espécie de espelho que projeta o ideal de cada indivíduo daquela massa. "A relação que as torcidas estabelecem com o jogo é hipnótica e projetiva. Nessa relação podemos perder também e aceitar isso é um simbolismo forte. Admitimos que não somos onipotentes", diz o paulista.

No dia 3 de junho, um torcedor corintiano foi encontrado morto na Marginal Tietê, em São Paulo. Estava seminu, com sinais de espancamento. Foi o resultado do confronto das torcidas de Corinthians e Vasco, que jogaram no estádio do Pacaembu a semifinal da Copa do Brasil deste ano. É quando a paixão vira do avesso. Para Wisnik, um dos venenos do remédio. "O jogo contém violência, é uma maquete de todas as situações da vida. Podem conter gêneros épicos, patéticos, líricos e dramáticos. O futebol é a sublimação da violência", conta.

Dentro de campo, ações promovem reações em torcedores. Como se fosse um show de rock, há pulos e gritos. Como se uma peça acabasse de terminar, há aplausos efusivos. Para o ensaísta, o fato de se aproximar das artes, nesse sentido, revigora a adoração pelo jogo. E inflama a torcida, os espectadores. "Em meu livro desenvolvo a ideia de que o jogo tem mais gratuidade. Ele oferece mais espaço para jogadas que, mesmo sendo improdutivas, têm alguma função plástica. Há uma epifania da forma, uma plasticidade corporal que se realiza em uma espécie de grande teatro de massas." Exemplo possível são os dois "não-gols" de Pelé na Copa do Mundo de 1970. Não foram gols, mas são lembrados até hoje. Pelo improvável e pela beleza. Exatamente os motivos que fazem José pular ao comemorar um gol do Coritiba, Fabiano puxar o coro quando o Atlético marca ou Allan mudar de personalidade quando o Paraná joga.

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