
O longa-metragem 2001 Uma Odisséia no Espaço (1968) contém, talvez, o mais intrigante e celebrado corte da história do cinema. Também é, possivelmente, o maior salto temporal em uma narrativa fílmica de todos os tempos: quatro milhões de anos. A transição de planos ocorre quando um macaco, ancestral remoto da raça humana, arremessa para o alto, em direção ao céu, um osso, que acaba de ser usado para matar outro símeo de seu grupo.
A câmera acompanha a trajetória ascendente do objeto transformado em arma até o início de sua inevitável queda, por conta da força da gravidade. Nesse momento, o filme introduz ao espectador a imagem de uma nave espacial, cujas forma e cor se assemelham bastante às do osso. Ao som da valsa "Danúbio Azul", de Johann Strauss, a espaçonave atravessa a tela, flutuando no infinito.
A distância cronológica que separa esses dois planos, mas aproxima em significado o fragmento ósseo da imagem de uma nave imersa no futuro, ganha um significado extra diante da constatação de que a idéia de porvir projetada pelo filme, baseado no romance de Arthur C. Clark, antecipa um século 21 que, para nós, em pleno 2007, já é presente.
Uma das inúmeras leituras possíveis de 2001 Uma Odisséia no Espaço diz respeito à antecipação de um futuro, no qual o homem, na ponta da trajetória evolutiva da espécie, e a máquina, uma de suas criações, entram em confronto, por, de alguma forma, se confundirem. De tão arrojado, o computador Hal 9000 adquire de seu criador faculdades como a fala, o raciocínio lógico. Ao ponto de também absorver suas imperfeições, como o descontrole emocional. Chega ao extremo de, em seu processo de colapso (ou morte), apresentar um comportamento muito similar ao dos homens, que, na velhice, por conta de um processo neurológico degenerativo, começam a agir como crianças. Na medida em que o supercomputador do filme fenece, ele regride ao estágio infantil.
Faz sentido que, em 1968, às vésperas da chegada do missão Apolo 11 à Lua, e já em tempos de escalada tecnológica, o clássico de Stanley Kubrick ocupe-se dessa discussão. Desde seus primórdios, o cinema imagina o futuro tomando como base conflitos e preocupações que o afligem nas circunstâncias da criação do filme.
Sobre essa tendência de usar o presente e suas preocupações para imaginar sociedades futuras, a professora, doutora em Sociologia, da Universidade Federal de Goiás, Alice Fátima Martins, que desenvolveu sua dissertação de doutoramento em torno do tema, afirma que toda narrativa fílmica é um testemunho de seu tempo, do contexto sócio-histórico no qual ela está inscrita, "não importando se nos referimos a documentários, reconstituições históricas, ficções de um modo em geral, ou ficção científica".
"As histórias contadas nos filmes apóiam-se nas malhas sociais de seu tempo seja para tratar do passado, do presente ou do futuro. E o fazem dando destaque a certas informações, omitindo outras, articulando discursos que assumem certos pontos de vista dentro desse contexto. Com os filmes de ficção científica esse processo não é diferente. O fato de seus argumentos terem projetos deliberadamente descolados da realidade presente não faz deles testemunhos menores de seu contexto sócio-histórico", afirma a professora ao Caderno G.
Autocracia
Muito cedo, já no cinema mudo, encontram-se exemplos dessa relação entre presente e futuro. O clássico Metrópolis (1927), de Fritz Lang, por exemplo, não deixa de ser uma espécie de projeção temporal de preocupações bastante palpáveis em uma Alemanha entre-guerras, às vésperas da ascensão ao poder do Partido Nacional Socialista e de seu líder, Adolf Hitler.
O enredo é ambientado no século 21, em uma grande cidade governada de forma autoritária por um poderoso empresário. Seu círculo mais próximo de colaboradores constitui a classe privilegiada. Os trabalhadores, em contrapartida, são escravizados pelas máquinas (como esquecer a figura ao mesmo tempo sensual e gélida do robô feminino, símbolo maior do longa-metragem), e condenados a viver e trabalhar em galerias no subsolo.
Não à toa, Metrópolis, quando de seu lançamento, causou tamanho impacto em Hitler que, ao chegar ao poder, solicitou ao seu ministro da Propaganda, Paul Joseph Goebbels, que convidasse Fritz Lang para fazer filmes de conteúdo nazista. O führer não percebeu, nas entrelinhas da obra de ficção científica de Lang, um forte de teor de crítica política à ideologia defendida por seu partido. O diretor, obviamente, rejeitou a proposta e fugiu para Paris, onde chegou a realizar filmes de conteúdo antinazista antes de imigrar para os Estados Unidos.
Para o doutor João Gabriel L. C. Teixeira, professor de Sociologia da Arte na Universidade de Brasília (UNB), apesar de seus 80 anos, Metrópolis não perdeu sua atualidade, sobretudo "pela interpretação cada vez mais pertinente da luta de classes e dos conflitos sociais", contida no filme. "Além disso, trata-se de uma metáfora cada vez mais atual da metropolização da humanidade", arrematou Teixeira.



