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Entrevista

“Difícil fugir do mundo que nos envolve, da alma que somos”

Marcelo Backes, escritor

"Em última instância, eu escrevo para não matar, eu escrevo para não matar a mim mesmo, inclusive." Marcelo Backes, escritor | Malena Bystrowicz/Divulgação
"Em última instância, eu escrevo para não matar, eu escrevo para não matar a mim mesmo, inclusive." Marcelo Backes, escritor (Foto: Malena Bystrowicz/Divulgação)
Berlim, cidade onde Marcelo Backes escreveu Três Traidores e Uns Outros, em 2008 |

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Berlim, cidade onde Marcelo Backes escreveu Três Traidores e Uns Outros, em 2008

Marcelo Backes é um escritor original e um tradutor talentoso. Como leitor, trouxe para o Brasil vários autores importantes da literatura alemã atual – "trouxe" porque indicou para publicação escritores até então inéditos no mercado nacional. E também os traduziu. Exemplos são Juli Zeh (A Menina Sem Qualidades), Sasa Stanisic (Como o Soldado Conserta o Gramofone) e Ingo Schulze (Celular).

Backes também verteu para o português alguns gigantes, de Marx e Engels até Heinrich Heine e Franz Kafka.

Como escritor, publicou Esti­­lhaços (2006), Maisquememoria (2007) e acaba de lançar Três Traidores e Uns Outros. Sobre este, ele conversou com a reportagem da Gazeta do Povo, numa série de e-mails.

Nascido em Campina das Missões, no Rio Grande do Sul, vive hoje no Rio de Janeiro, mas não passa muito tempo sem viajar para a Alemanha, onde estudou e morou. Os deslocamentos que encara e os vínculos germânicos que mantém influenciam seu trabalho sobremaneira.

Três Traidores e Uns Outros fala sobre questões difíceis, entre elas a desilusão amorosa e a solidão, mas o faz de um modo que parece tornar os problemas um pouco mais suportáveis, embora não menos complicados. É, nas palavras do autor, o "escapismo pelo humor, para melhor suportar o machado do mundo".

O livro costura cinco histórias com referências que parecem ter saído da biografia de Backes – como em "Outubro Dourado", na qual um tradutor brasileiro reencontra uma escritora alemã pela qual foi apaixonado. Em outra, chamada "O Enforcado", um intelectual experimenta voltar para a cidade onde nasceu, no interior gaúcho.

Em resumo, é um livro genial de um escritor autêntico. Poucos são assim.

Em que medida a cidade onde vive faz diferença para o trabalho como escritor e tradutor?

Eu moro no Rio de Janeiro há cinco anos, mas vivo algumas temporadas na Alemanha e nasci no interior do Rio Grande do Sul. Acho que dá para perceber com nitidez que esse deslocamento é importante na minha literatura; e não apenas tematicamente, assim espero. Como tradutor, o mesmo deslocamento é importante sobretudo porque me propicia o contato direto e frequente com o país de origem da literatura que traduzo, facilitando, além disso, os processos de intermediação.

No conto "Rodapé", protagonizado por um tradutor, o escritor argentino Rodolfo Walsh escreve sobre a experiência terrível que é "emprestar o cérebro" pa­­ra as ideias alheias e, no fim do dia, estar cansado demais para se dedicar às ideias próprias. Você, como tradutor, experimenta al­­gum dilema desse tipo?

Com certeza, tanto que paro de escrever quando traduzo, ou paro de traduzir quando escrevo. Acho – na verdade tenho certeza – que seria mais fácil ser escritor e jardineiro do que escritor e tradutor. Se bem que como jardineiro eu só me ocuparia do trabalho de podar e usaria demais o facão para cortar arbustos inúteis, pensando que são cabeças, às vezes.

Você já comentou que escreve para "dar safanões em seus fantasmas". Posso perguntar que fantasmas são esses?

Em última instância, eu escrevo para não matar, eu escrevo para não matar a mim mesmo, inclusive. Ou, pelo menos, escrevo para não bater em ninguém e para me entender melhor comigo mesmo e com o mundo. Quanto aos personagens intelectuais, Riobaldo – por exemplo – também o é, ainda que seja mero jagunço atirador, cachorreando pelo sertão. Difícil fugir do mundo que nos envolve, da alma que somos, daquilo com que nos ocupamos.

É possível adivinhar que você é gaúcho só pela maneira como escreve, por alguns termos e expressões que usa. Você se identifica com a literatura gaúcha atual?

Acho que não me identifico com a literatura gaúcha atual. Gosto muito de alguns autores como Ser­­gio Faraco e Aldyr Garcia Schlee, e quero ter aprendido muito com eles, mas nem sei o que é a literatura gaúcha atual. Tenho certeza, no entanto, que o fato de ter nascido e passado minha infância no interior missioneiro foi absolutamente decisivo na minha formação de escritor.

A certa altura de Três Traidores e Uns Outros, o narrador escreve um poema para a escritora alemã que quer conquistar e se desculpa para o leitor sugerindo que, em português, os versos não ficaram tão bons. Assim como o seu personagem, você acha que algumas coisas soam melhor em alemão (ou em português)?

Acho sim. Acho que sobretudo na poesia o alemão concede instrumentos mais eficazes do que o português. A discussão seria longa, mas quem acha que o alemão é aquela língua de porteiro de campo de concentração, não sabe a "beleza" que um poeta como Paul Celan foi capaz de alcançar com ela. Basta tentar traduzir Heine – que aliás disse que o alemão era muito propício para xingar cavalos – ao português para ver. Ou Rilke. Ou Georg Trakl. Tenta-se com 20 poemas de cada um, e ao final considera-se que dois foram mais ou menos bem sucedidos. Por outro lado, leia-se Guimarães Rosa em alemão! E isso que também na prosa o alemão é muito mais maleável do que o português. É mais ou menos como se o alemão fosse aquilo que é, mais aquilo que és capaz de fazer com ele. E o português fosse bem pouco mais daquilo que de fato é. Tanto que os processos criativos que um Guimarães Rosa lhe aplica não são típicos do português e sim de línguas como o alemão. Mas é certo, também, que no poema que referiste há um bom tanto de brincadeira e autoironia.

Três Traidores e Uns Outros trata de temas difíceis (corações partidos, amores mal resolvidos) com uma leveza impressionante. Isso foi premeditado? Em alguma medida, essa leveza do narrador é um reflexo da maneira como você encara a vida?

Ri-se para não chorar, velha estratégia. Escapismo pelo humor, para melhor suportar o machado do mundo. Mas acho que o gosto que sobra nos meus livros, o ressaibo, ao final das contas, é amargo, e o sorriso sai com dor, amarelo.

Serviço:

Três Traidores e Uns Outros, de Marcelo Backes. Record, 176 págs., R$ 34,90.

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