Os organizadores da 30.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo optaram por dar um tom político à sessão de abertura do evento, realizada na quinta-feira à noite, no Auditório Ibirapuera, e apresentada por Serginho Groisman. Tanto o curta-metragem "I Want to Be a Pilot", do cineasta espanhol Diego Quemada-Diez, quanto o documentário "The U.S. Vs. John Lennon", dos norte-americanos David Leaf e John Scheinfeld, são obras cuja missão é fazer pensar sobre o estado de coisas no mundo contemporâneo.
O longa-metragem de Leaf e Scheinfeld, muito aplaudido pelo público que lotou a longa cerimônia de abertura da mostra, é uma obra extremamente pertinente, embora trate de acontecimentos ocorridos há mais de três décadas. Mais do que falar da genialidade criativa do ex-beatle John Lennon, o filme pretende iluminar um capítulo pouco conhecido da biografia do compositor britânico: seu confronto acirrado com o governo norte-americano nas décadas de 70 e 80.
Pedra no sapato de Nixon
Decidido a viver em Nova Iorque com a mulher, a artista plástica japonesa Yoko Ono, Lennon tornou-se uma pedra no sapato do então presidente Richard Nixon, ao se firmar como uma espécie de porta-voz ilustre do descontentamento dos setores mais liberais da sociedade. Protestava contra a intervenção americana no Vietnã, apoiava grupos radicais, como os Panteras Negras e engajava-se em causas que de alguma forma colocavam o conservadorismo republicano em xeque.
Como se tratava de um mito, um ídolo da juventude, o ex-beatle era capaz de mobilizar corações e mentes em torno de suas opiniões, ao mesmo tempo bombásticas e irreverentes. O impacto da militância pacifista e anti-Nixon de Lennon e Yoko foi tamanho que o casal passou a ser investigado e monitorado pelo FBI, sendo classificado como "inimigos da pátria". Essa hostilidade chegou ao extremo de levar o governo dos Estados Unidos a tentar expulsá-los do país, sob a alegação de que Lennon havia sido preso na Inglaterra por porte de drogas e, portanto, não poderia pleitear um visto de permanência nos EUA.
Depoimentos
Imagens de época incluindo cenas do impagável protesto feito por John e Yoko em Amsterdam durante sua lua-de-mel, quando passaram sete dias na cama em nome da paz no mundo são, sem dúvida, um dos pontos altos do filme, mas não o único. Os diretores de "The U.S. Vs. John Lennon" mesclam esse material com depoimentos atuais de personalidades essenciais para a compreensão do período retratado. Ativistas como Ângela Davis, Ron Kovic (cuja vida foi retratada em "Nascido em 4 de Julho", de Oliver Stone) e o líder dos Panteras Negras, Bob Seale. Políticos como o senador democrata George McGovern, que disputou as eleições presidenciais de 1972 com Nixon. E intelectuais de peso como o escritor Gore Vidal e o cientista político Noam Chomsky.
É inevitável, ao assistir a "The U.S. Vs. John Lennon", traçar paralelos entre os Estados Unidos de Nixon e os de George W. Bush. Os discursos dos dois presidentes aproximam-se assustadoramente no que diz respeito à defesa de "valores americanos", como pátria, Deus, soberania e o poder de encabeçar a cruzada pela democracia no mundo. A conclusão a que se chega é que falta ao mundo contemporâneo uma figura como John Lennon, que alie inteligência, senso crítico e irreverência.
Olhar ingênuo sobre o Quênia
Muito falado na Europa, o curta "I Want to Be a Pilot", do espanhol Diego Quemada-Diez, decepciona por conta de sua ingenuidade. Rodado nas favelas do Quênia, o filme tem como protagonista um garoto órfão, portador do vírus da aids, que sonha com uma família, um mundo mais justo e a possibilidade de pilotar aviões para conseguir escapar da miséria e desolamento em que vive. Bem-intencionado, o curta padece de um excesso de idealismo que beira a manipulação. Pretende ser comovente e, por isso, acaba não emocionando.



