Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Opinião

Dois garotos, um cachorro e uma tragédia

"Menino do Cinco" fala sobre disputa de classes pela história de dois garotos

"Ricardo finalmente encontra um amigo, mas ele não pode ser seu". Essa é a breve sinopse de "Menino do Cinco", um curta-metragem baiano dirigido por Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira, contando a história de dois garotos de classes sociais distintas que disputam a posse de um filhote de cachorro.

Uma porta se abre, um garoto descabelado passa por ela e caminha pelo apartamento, até então vazio. Sua solidão é camuflada por vários brinquedos, mas só isso não é suficiente. O cachorro de um jovem de classe mais baixa, que circula com os amigos na praça próxima ao prédio, aparece acidentalmente nos jardins e encontra o garoto solitário. Mesmo com os pedidos eufóricos do real dono do animal, ele não devolve o cachorro, levando-o para sua casa. A disputa está declarada, ambos vão se esforçar muito para conseguir o direito desse filhote.

O cachorro deixou de ser um apenas um amigo, um animal de estimação, se tornou um bem disputável, a ser conquistado. Quem tem mais força? Quem tem o direito de ficar com ele? Para o rapaz pobre, aquele mocinho rico e cheio de brinquedos roubou o seu cachorro, o seu único bem; e para o outro garoto, aquele cachorro se tornou seu único amigo. A intensidade desses sentimentos acarretou numa desqualificação do cachorro como um companheiro. Um objeto a ser possuído, custe o que custar.

O garoto de classe média desafia todas as suas barreiras para ter esse filhote. Mesmo com asma, morando nos limites de um edifício residencial e com a reprovação inicial do seu pai sobre ter um cachorro em casa. O jovem da praça deixa de lado seus amigos e enfrenta os limites que separam as ruas das grades daquele prédio.

O menino da praça começa seus ataques para conseguir o seu cachorro de volta. Usando um laço com carne para puxar o filhote e pedindo para o pai do garoto. Enquanto o jovem de classe média desafia a sua doença e também os limites do seu prédio, fugindo de casa para continuar com o filhote.

Somos levados para uma atitude desesperada: a invasão do jovem pobre ao apartamento do garoto asmático. Ao entrar no quarto do menino do cinco, este segura o filhote pelo lado de fora de um buraco na tela de sua janela, ameaçando soltar o pequeno cachorro caso o menino da praça avance um simples passo. Não acreditando na ameaça, o garoto pobre parte em direção a janela. Um passo, uma atitude, uma mão que se abre e o filhote caí.

Podemos perceber que esse curta-metragem expressa uma mensagem à sociedade moderna na qual vivemos. O garoto do quinto andar, solitário, doente, que vive encubado dentro de um prédio residencial, suprindo sua solidão com brinquedos. A falta de uma mãe e um pai distante, concentrado em estudos e trabalho para dar ao filho algo para nutrir sua imaginação e apagar esse confinamento.

Enquanto isso, um garoto, rodeado de amigos, passeia pelo lado de fora daquela construção cinza, livre das paredes e do isolamento, tem o seu único bem, o seu cachorro, que é pego pelas mãos de um garoto que tem tudo nas mãos. Uma disputa de inconsequências: o poder de quem é mais forte.

Somos influenciados pelo cinema hollywoodiano a acreditar que sempre há um mocinho e um vilão, e nesse curta-metragem podemos definir o garoto asmático inicialmente como o bom garoto, enquanto o garoto da praça nos parece um malfeitor, que quer retirar a felicidade do menino do cinco.

Uma virada nessa visão pode ser notada nos instantes finais dos 20 minutos de filme, quando o mocinho arrisca uma manobra complicada, colocando em jogo a vida do filhote, e não volta atrás quando sua ameaça é desrespeitada, soltando-o do quinto andar. Mas será que esse é um filme sobre a disputa entre o bem e o mal? Esses dois garotos podem ser um reflexo de uma sociedade competitiva dos dias de hoje, uma metamorfose perigosa, capaz de colocar em risco valores ainda maiores do que apenas bens capitalistas.

A busca do eterno vencer, e se tornar o melhor dentro de uma competição. A frase "se não será meu, não será de mais ninguém" cabe tanto para esse curta quanto para o mundo que acontece fora da tela.

Atitudes precipitadas, escolhas que se fazem erradas e vítimas inocentes, terceiros que sofrem com a disputa daqueles que querem medir forças, a imagem dos dias contemporâneos ilustrada em dois jovens garotos de classes distintas, mas tão próximas.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.