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MPB

Duelos de titãs em Montreux

Dois momentos históricos da MPB voltam à tona em livros que tentam separar o fato da lenda

O duelo entre Elis Regina e Hermeto Pascoal foi puramente musical: ela estava nervosa, mas foi carinhosa com ele | Divulgação / J Batista/Câmara Federal
O duelo entre Elis Regina e Hermeto Pascoal foi puramente musical: ela estava nervosa, mas foi carinhosa com ele (Foto: Divulgação / J Batista/Câmara Federal)
Confronto entre João Gilberto e Tom Jobim, em julho de 1985, foi uma aguerrida luta de egos |

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Confronto entre João Gilberto e Tom Jobim, em julho de 1985, foi uma aguerrida luta de egos

Na sexta-feira, 20 de julho de 1979, rolava no palco do Casino de Montreux, a Nuit Brésilienne. Não era apenas mais uma "noite brasileira" do famoso festival de jazz suíço, mas uma noite de gala especial que reunia, em espetáculos distintos, Elis Regina e Hermeto Pascoal.

A quinta-feira 18 de julho de 1985 foi a Noite do "Barraco" Brasileiro: João Gilberto se recusou a "abrir" o show para Tom Jobim diante de uma platéia impaciente que aguardava havia mais de duas horas.

Nada menos do que quatro livros relatam os dois episódios, em versões totalmente desencontradas e mitológicas. Três publicados recentemente: Música, Ídolos e Poder/Do Vinil ao Download, de André Midani; Ouvindo Estrelas, autobiografia do produtor Marco Mazzola; e, de minha autoria, Improvisando Soluções/ O Jazz como Exemplo para Alcançar o Sucesso. E ainda, de alguns anos antes, Noites Tropicais, de Nelson Motta.

Os quatro autores foram testemunhas dos fatos, mas muitos acabaram traídos pelas armadilhas da memória afetiva – um exemplo notável do famoso Efeito Rashomon, denominado segundo o filme Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, em que um crime presenciado por quatro pessoas é descrito de quatro maneiras mutuamente contraditórias. O tal fenômeno – cito a Wikipédia — "é o efeito da subjetividade da percepção na lembrança, pelo qual os observadores de um acontecimento são capazes de oferecer relatos substancialmente diferentes, mas igualmente plausíveis, do que viram." Ou, como dizia o poeta Jean Cocteau, "lendas são mentiras que acabam virando História." A obrigação do repórter, de publicar imediatamente na Manchete a descrição dos concertos, talvez tenha me dado uma certa vantagem, a do jornalista que apura na hora e "fecha" logo a sua matéria. Vou aqui pura e simplesmente relatar, da maneira mais fiel e objetiva possível, aqueles dois "duelos".

Elis x Hermeto

A expectativa e a corrida aos ingressos para os shows de Elis e Hermeto era tanta que, excepcionalmente, a organização do evento programou uma matinê. Nesta, como no espetáculo da noite, Elis "abriu" para Hermeto, sem maiores problemas. Tinha plena consciência de que aquele era um festival de música instrumental improvisada e mesmo a maior diva do Brasil não podia fazer face ao telúrico Hermeto, com uma de suas melhores bandas de todos os tempos: Cacau e Nivaldo Ornelas (saxofones), Jovino (teclados) Itiberê (baixo), Nenê (bateria), Pernambuco (percussão), Zabelê (vocais) e o Bruxo – um dos maiores multiinstrumentistas do planeta – se desdobrando nos sopros, teclados, vocais e percussões. Hermeto havia deslumbrado os EUA dez anos antes ao gravar com Miles Davis. Nesta sua primeira visita à Europa, foi saudado, à véspera de sua apresentação, com um texto encomiástico no prestigioso International Herald Tribune, assinado por Michael Zwerin, crítico e ex-trombonista que integrou a pioneira Tuba Band de Miles Davis.

Escreveu Zwerin: "Depois de João Gilberto, Antônio Carlos Jobim, Airto Moreira e Egberto Gismonti, conheçam agora Hermeto Pascoal, talvez o mais brilhante de todos estes brasileiros. Quem é este misterioso gênio de um canto remoto do Brasil? Uma coisa é certa: vamos ouvir falar mais dele." Profético.

Elis se esforçou ao máximo. Depois de 15 anos de PolyGram, tinha ingressado na Warner e um disco ao vivo em Montreux era uma estréia de ouro no novo selo. O grupo que a acompanhava era essencialmente jazzístico: o marido César Camargo Mariano, aos teclados, o guitarrista Hélio Delmiro, o baixista Luizão Maia, o baterista Paulinho Braga e o percussionista Chico Batera. Elegante numa saia vermelha de dançarina flamenca, com uma blusa de lamê violeta, que deixava os braços à mostra, e uma orquídea lilás nos cabelos à Billie Holiday, Elis deu o melhor de si. Mas não se sentia à vontade e, como relata André Midani, "suava aos montes, estava pálida e ofegante, como que carregando o mundo nas costas."

Midani socorreu Elis, engatinhando pelo fundo do palco e levando um copo d’água, que ela "bebeu de um jato e voltou ao microfone." Ainda segundo Midani, Elis disse depois do show: "Quando pisei no palco, lembrei que a Ella Fitzgerald tinha pisado dois dias antes aquele mesmo chão, lembrei que sou filha de uma lavadeira (...) fiquei transtornada e queria morrer." (A mãe de Ella também era lavadeira.) E Elis fez Midani jurar que nunca lançaria aquele disco.

Depois do segundo show de Hermeto, Elis entrou no palco para um duo com o Bruxo, com um vestido claro de estampado floral. Foi talvez um dos quartos de hora mais importantes na história da MPB: "Asa Branca", "Corcovado" e o grande final, uma "Garota de Ipanema" cheia de veneno, com pianista e cantora trocando improvisos geniais. Basta conferir no YouTube: nenhuma hostilidade entre os dois, ao contrário, Elis acariciando a juba alva e leonina de Hermeto, sorrindo para ele, os dois se abraçando, física e musicalmente.

Assim que terminou o espetáculo, Marco Mazzola, produtor da Warner, me convidou para tomar champanhe com Elis no Bar des Musiciens, onde César Camargo Mariano "jameava" com jazzistas gringos, que o adoravam. Terrivelmente dividido na época entre a palavra e a música (estudava saxofone), despejei sobre Elis minhas dúvidas existenciais, estimulado pelas borbulhas. Autografei para ela meu livro Rock: o Grito e o Mito, não sei por que na edição espanhola da Siglo Veintiuno. Talvez para impressionar: era a mesma editora de Borges e Cortázar.

Oito anos mais jovem que eu, Elis me pareceu de uma serenidade totalmente zen, em paz com a vida. Daí o choque que sofri ao saber de sua morte, dois anos e meio depois, de uma overdose com intenções suicidas. Dois anos após a morte de Elis, André Midani, num impulso mediúnico, ouviu as fitas de Montreux e, aos prantos, pediu desculpas póstumas a Elis e lançou o álbum de Montreux, incluindo as três canções com Hermeto, até então inéditas.

Ouvindo agora os álbuns de Hermeto e Elis em Montreux, a memória de 1979 me volta com força brutal à cabeça (e ao coração). Lembro o vôo Rio-Genebra a bordo de um Jumbo com Hermeto e sua banda, a visão cristalina da costa basca, onde faz um ângulo reto entre a Espanha e a França, eu parecia sobrevoar um mapa. Hermeto deve ter sentido o mesmo. Oito anos depois, no álbum Só não Toca Quem não Quer, dedicou-me uma faixa, sintomaticamente intitulada "Viagem".

João x Tom

Se o duelo entre Elis e Hermeto foi puramente musical, já o que opôs João Gilberto a Tom Jobim foi uma aguerrida luta de egos. João, que já estava em Montreux havia alguns dias, fez o dever de casa: na tarde antes do show, acompanhado de sua companheira, uma psicanalista portuguesa, fez a checagem de som, testou uma dúzia de microfones e foi o único artista do festival que soube cortar a interferência dos refletores no sistema de som, que, no seu caso, seria fatal.

Já Jobim, com sua "banda nepotista" de 11 figuras (incluindo quatro de sobrenome Jobim, duas Caymmi e duas Morelenbaum), atravessava aeroportos e alfândegas, depois de ter tocado nos festivais de Antibes (França) e Vitória (Espanha). Às 21h15, o maestro Danilo Caymmi terminava o ensaio e a checagem de som. Os músicos, exaustos, iam para o hotel tomar banho e trocar de roupa. O espetáculo deveria ter começado às 20 horas, já eram quase 22 horas, a platéia estava impaciente. Num gesto desesperado, o promotor do festival, Claude Nobs, convocou um músico baiano, que estava de bobeira no bar do Cassino, para tocar enquanto Jobim e Gilberto estavam ocupados na sua queda-de-braço. Foi a meia hora de fama para o guitarrista canhoto José Barrense-Dias, residente em Nyon, onde dava aulas de violão.

A história nunca é tão simples quanto parece. Jobim, ao saber que o show ia ser gravado pela TV – detalhe não especificado em seu contrato – exigiu de Claude Nobs os seus direitos. O que implicava, àquela altura da noite, em levantar a soma de uns US$ 6 ou 7 mil .

Não à toa, além dos relógios e dos chocolates, a Suíça é a terra dos bancos. O diretor financeiro do festival saiu em campo e descolou a grana, ninguém sabe onde, nem como. Às 23 horas, Jobim e banda – mais parecia um show de Sérgio Mendes em Vegas – adentraram o palco. O crítico do L’Est Vaudois, embora adorasse "a renda finamente tecida por Jobim", achou a fórmula "discutível, com melodias diluídas num café muito mais hollywoodiano do que brasileiro."

Finalmente, meia hora depois da meia-noite, João pisa discretamente no palco. Camisa branca, blazer pied-de-poule, blue jeans e tênis All Star branco, um banquinho e um violão, dois cartazes de cada lado a seus pés, com o roteiro das músicas. Ironicamente, temas de Jobim ("Desafinado", "Garota de Ipanema", "Retrato em Branco e Preto"), os jurássicos "Adeus América" e "Aos Pés da Santa Cruz", Ary Barroso ("Morena Boca de Ouro", "Sandália de Prata" e "Aquarela do Brasil"), uma surpreendente versão nova de "Menino do Rio", e a bela canção "Estate", num inimitável sotaque ítalo-baiano. Pediam que cantasse mais alto e João cantava cada vez mais baixinho, ao toque suave do pinho. Conquistou o silêncio respeitoso da platéia e, duas horas e dez minutos depois, às 2h40 da madrugada, às margens do lago Léman, olhando para a montanha, era quase possível enxergar o Corcovado, o Redentor, que lindo...

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