
Algumas estreias locais despertam interesse, sem dúvida. Mas é sobretudo da soma de peças da temporada passada que se faz a participação curitibana no Festival de Curitiba. Cria-se, por poucos dias, um momento privilegiado para observar em conjunto a produção da cidade e pensar sobre ela olhando um pouco em retrospectiva. O que se vê é o envolvimento crescente de artistas com as preocupações e os procedimentos do teatro contemporâneo.
Dito isso, não se pode esconder que a própria ideia de teatro contemporâneo não é das menos polêmicas. O termo fica rarefeito diante da variedade de vertentes que designa. Mas, essencialmente, invoca a quebra de antigas convenções teatrais. Às vezes, no limite do hibridismo com outras artes. Quase sempre, dando aos elementos da encenação luz, som, cenário, objetos novos poderes diante da velha dominação do texto.
Sobretudo, trata-se de um teatro que troca a ilusão de reproduzir a realidade pelo autoquestionamento sobre seus modos de fazer.
Para o diretor Marcos Damaceno, em Curitiba, "há alguns grupos que honram o teatro investigativo e representam bem essa inquietação, na busca de novas linguagens, apesar de serem poucos os que apresentam real inovação ou avanço em termos estéticos". Ele coordena o Núcleo de Estudos de Dramaturgia do Sesi/PR e reapresenta o espetáculo Antes do Fim durante o Fringe, na Mostra Outros Lugares um dos redutos da nova dramaturgia curitibana.
"Não acho que a produção curitibana pense sobre o teatro contemporâneo", avalia também a atriz Andrea Obrecht, que encena, com a Pausa Companhia, o Roteiro Escrito com a Pena da Galhofa e a Tinta do Inconformismo. "As ideias desse teatro permeiam aqui e ali nas montagens, mas não significa que reflitam sobre a contemporaneidade. E me parece que, para se fazer teatro contemporâneo, é preciso refletir sobre as opções, tem a ver com a atitude do artista."
A cena contemporânea em Curitiba pode ainda ser incipiente, mas progride. "Vejo que cada vez mais artistas e público tentam se encontrar no desconhecido que o teatro pode proporcionar", comenta Sueli Araújo, diretora da CiaSenhas, que voltará ao cartaz com Homem Piano Uma Instalação para a Memória.
"A julgar pelos trabalhos da Companhia Silenciosa, Heliogábalus, CiaSenhas, Cia. Brasileira, Obragem, Marcos Damaceno, 1801, Armadilha, Teatro de Breque, Pausa, Transitória, Súbita, Acruel, Subjétil e Couve-flor nomes que lembrei de cabeça agora , não há dúvida, temos uma cena com foco no contemporâneo admirável", conclui Luiz Felipe Leprevost, autor de duas peças que estrearão no Fringe, O Butô de Mick Jagger, dirigida por ele mesmo, e Hieronymus nas Masmorras, em leitura comandada por Roberto Alvim.
"Cada uma dessas companhias tem pesquisa própria e se empenha em não permitir que o teatro seja um museu tomado por tédio e mofo. Apostam que a comunhão em tempo presente, numa época em que somos multidões de sozinhos, auxilie na tentativa de se devolver a humanidade ao humano", completa.
Presente
Na linha de frente, está a Cia. Brasileira, do diretor Marcio Abreu. Ele concebe o teatro justamente como o lugar da "ação compartilhada" e da "ressignificação do humano". De "dentro da fogueira", como diz, Abreu aponta duas questões inescapáveis hoje. Repensar modelos pré-existentes de escrita para teatro é uma delas.
A outra diz respeito à presença do ator em relação ao público, que se afasta da noção de representação (a reprodução de uma realidade ausente) para assumir o frescor da apresentação. "Como mobilizar o ator e os elementos que compõem a dramaturgia para convergir na criação de um tempo real, de um momento presente, com todas as suas armadilhas e dificuldades?", questiona-se o diretor, e tenta responder mais uma vez em Oxigênio.
Também é a dimensão criativa dessa "poética do presente" o foco do interesse da CiaSenhas, na tensão entre a memória e a intuição do futuro. A companhia avançou notavelmente em sua pesquisa de linguagem com Homem Piano. "O espetáculo nos permitiu desenvolver procedimentos que há algum tempo vinham nos provocando, como a maior participação da plateia na construção da escritura cênica, o desvendamento do espaço de atuação e a radicalização das instâncias ator e performer", diz a diretora. Embora seja um solo do ator Luiz Bertazzo, a montagem se realiza em dependência do público, convidado a se deslocar para o interior da sede do grupo e a compartilhar as próprias memórias.
Narradores
A performatividade está no centro desse teatro. Muitas vezes, associada a outro traço marcante, a narração, substituindo o ato de representar pelo de contar. "Parece que a narrativização da cena é um fenômeno mundial", diz Sueli. "Sua premissa é a experiência compartilhada. Ela mobiliza imagens criadas e situações reais, verdade e ficção."A tradição curitibana de contistas poderia ser razão para que tal prática ganhe espaço nos palcos curitibanos, especula a diretora.
A palavra, afinal de contas, não perdeu espaço. Seu modo de uso na encenação, na verdade, se ampliou. "Há conceitos do teatro contemporâneo que se alinham ao que venho explorando, como o foco na palavra em si, como ação e elemento autônomo da criação, em detrimento da palavra como ferramenta para criação de personagem, trama, diálogos etc", compara Damaceno. Em Antes do Fim, isso se traduz no poder "encantatório" da palavra, acentuando sua musicalidade e seus estranhamentos.
Ao escrever O Butô Mick Jagger, também Leprevost alargou o uso corrente da palavra. "Desenhou" o texto espalhando pela página as palavras tais quais corpos dançantes. O espetáculo realiza um casamento incomum do teatro japonês com a cultura pop bem, não tão incomum em se tratando de teatro contemporâneo.
"Há uma apropriação explícita tanto do Butô, de seus fluxos e suas contorções ritualísticas de acesso ao reino dos mortos, como também do universo pop sucateado que se vê no rock dito clássico e em dois de seus ícones, Mick Jagger e Kurt Cobain", adianta.



