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Sting: sem dom para as rimas | Arquivo Gazeta do Povo
Sting: sem dom para as rimas| Foto: Arquivo Gazeta do Povo

O lance de citar definições de dicionário para mostrar a influência de um artista sobre a história das idéias é balela. Franz Kafka (1883 – 1924) é tão importante para a literatura que até virou adjetivo, kafkiano, usado para tudo que tem algo de persecutório, de pesadelo burocrático. Idem com Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) para a filosofia e com Federico Fellini (1920 – 1993) para o cinema.

Gustave Flaubert (1821 – 1880) não teve o mesmo tratamento. Quer dizer, o termo "flaubertiano" existe, mas é difícil vê-lo fora de um contexto literário. Quis a posteridade que uma das crias do escritor se tornasse referência. E Emma Bovary não rendeu só um adjetivo, bovarista. Ela deu origem também a um substantivo, o bovarismo.

O Houaiss o descreve como a "tendência que certos indíviduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se possuíssem". A definição se baseia na protagonista de Madame Bovary, o romance flaubertiano (arrá!) que acaba de completar 150 anos de sua primeira publicação.

Para marcar a data, a editora Nova Alexandria reedita o clássico em capa dura, na tradução de Fúlvia Moretto, e inclui, pela primeira vez em português, os autos do processo movido contra Flaubert.

Ele virou réu por atentado à moral e aos costumes que a sociedade francesa, em meados do século 19, defendia com unhas, dentes e advogados. Terminou que a defesa convenceu o júri de que as acusações eram descabidas e Flaubert foi absolvido – mas teve de acatar alguns cortes impostos pela corte.

Hoje, a idéia de processar um romance parece absurda, mas, na época, era razoável. Mesmo o poeta Charles Baudelaire (1821 – 1867) chegou a se posicionar contra o autor de Madame Bovary para, no ano seguinte, ver as suas Flores do Mal sofrer ataque semelhante.

"Sim e não", diz Sandra M. Stroparo, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sobre se a obra-prima de Flaubert se mantém atual e capaz de provocar os leitores como o fez um século e meio atrás.

"As mulheres têm mais liberdade de escolha hoje e, obviamente, mais responsabilidade sobre essas escolhas. Mas estão preparadas para elas. Isso faz com que os devaneios de Emma possam ser vistos como tolices, irresponsabilidade. E, ao mesmo tempo, como um grito de liberdade das mulheres burguesas, lá da metade do século 19, algemadas aos seus casamentos e ao mundo que o marido podia – ou não podia – dar para elas", explica.

Trabalhando o livro com alunos de 18 e 19 anos, Sandra percebeu que eles ficam fascinados pela personagem, compreendem a mediocridade de Charles, o marido, e o tédio de Emma, mas não "concordam" com ela – que, enfim, acaba enfrentando o tédio com dois amantes.

É possível que parte dos leitores – homens e mulheres – se interesse por Emma da mesma maneira que o professor de literatura Sidney Kugelmass, do conto "O Caso Kugelmass", de Woody Allen, incluído no livro Que Loucura!. Abatido com um segundo casamento monótono e ansioso por viver uma paixão, ele conhece o criador de um armário capaz de transportar seus usuários para dentro de narrativas ficcionais. Kugelmass decide então flertar com Emma Bovary, que o recebe com um sorriso "ligeiramente sacana" e oferece algo para beber.

"O que o leitor contemporâneo continua lendo como atual no romance é a busca da protagonista. Isso porque ela se deixa guiar pelo desejo, antes mesmo de o desejo ter sido teorizado – na época só se falava em paixões. Essa associação entre desejar e viver é algo que deve permanecer atual enquanto o homem viver", diz Verónica Galíndez Jorge, da Universidade de São Paulo.

Sobre a maneira que os leitores atuais podem se aproximar de Madame Bovary, Sandra compara a agonia da protagonista ao tédio moderno em que as pessoas esbarram às vezes: "É um tédio motivado ou não pelas escolhas que fizemos na vida, motivado por um escapismo que o mundo do consumo parece prometer resolver, mas, como ele é ilimitado e o nosso dinheiro limitado, nunca saberemos. Foi também num buraco financeiro que Emma se meteu".

Na opinião de Viviane Ribeiro, da Aliança Francesa, a frustração é o tema principal da obra, seguida do retrato da "calma hipócrita" que caracterizava os casais da pequena burguesia provincial e da "burrice institucional". "Ainda que o adultério feminino não choque tanto quanto no século 19, Madame Bovary continua a surpreender por colocar em evidência uma mulher dona de si mesma, determinada a conseguir o que deseja, a ponto de deixar de lado os valores de sua época para o obter o que quer."

Nas palavras de Otto Maria Carpeaux, em um texto de 1973, o livro é "um libelo contra todo e qualquer romantismo".

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