• Carregando...
Única foto de Clarice a figurar nas mais de 600 páginas da obra que a apresenta ao leitor norte-americano comum | Cosac Naify/Divulgação
Única foto de Clarice a figurar nas mais de 600 páginas da obra que a apresenta ao leitor norte-americano comum| Foto: Cosac Naify/Divulgação

O maior interesse é sempre a obra

Benjamin Moser conheceu A Hora da Estrela em aulas de português, um de seis idiomas que domina. Tamanho foi seu arrebatamento que dedicou cinco anos a seguir os passos da família Lispector da Ucrânia ao Recife, percorrer as cidades onde Clarice morou, e pesquisar sua vida e obra, para escrever a biografia Why This World, lançada em agosto nos Estados Unidos.

Leia a matéria completa

"Era uma vez um pássaro, meu Deus!"

Ainda criança, Clarice Lispector criava contos que as revistas da época se recusavam a publicar. Com sua pessoalidade radical, não conseguia se adequar às expectativas por escritos infantis no padrão "Era uma vez...".

Leia a matéria completa

Visitando Clarice

Li numa coluna social: Clarice Lispector anuncia que desistiu da literatura. Aos 25 anos de idade, e leitor obsessivo de Clarice, logo entendi que ali havia uma entrevista.

Leia a matéria completa

22 perspectivas sobre o "arrebatamento"

Quem não conhece Clarice Lispector, ou ainda não a leu o suficiente para descobrir que jamais será possível lê-la o suficiente, tem meios para descobrir como a escritora marcou a vida de 22 leitores, hoje profissionais ligados às artes, no livro Clarice na Cabeceira, que a Rocco acaba de publicar.

Leia a matéria completa

A Hora da Estrela no cinema

Suzana Amaral tinha mais de 50 anos quando fez A Hora da Estrela, seu primeiro filme. Antes, era mãe de família, dona de casa. Virou cineasta quando decidiu ter outra vida.

Leia a matéria completa

Clarice Lispector (1920-1977) se ofendia ao ser chamada de estrangeira. A paupérrima aldeia de Tche­chelnik, onde nasceu, foi apenas parada emergencial para a família ucraniana que rumava aos Estados Unidos ou ao Brasil – ainda não haviam decidido aonde ir –em busca de paz. Recife, sim, ela considerava seu berço. Chegou à capital pernambucana no colo da mãe. Embora nunca tenha perdido o sotaque peculiar de erres ásperos e sua linguagem ainda cause estranhamento, não há dúvida: a escritora é brasileira em cada frase. Prova disso é a dificuldade de traduzi-la a outros idiomas sem perdas significativas.

Nos Estados Unidos que poderiam ter sido seu lar, o desconhecimento da literatura de Clarice se deve a poucas e péssimas traduções. Desde agosto, contudo, a autora conquista maior visibilidade. O mérito é de seu jovem biógrafo norte-americano, Benjamin Mo­­ser, e do livro por ele escrito, Why This World? (Por Que Este Mundo?), uma referência direta à inquietação existencial que sustenta toda sua literatura. Com o lançamento, Moser chamou a atenção de seus conterrâneos para "uma das carreiras literárias mais extraordinárias do século 20" – e começa a ser ouvido.

O livro volumoso, com mais de 600 páginas – daqueles "para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o", como desejou a menina do conto "Felicidade Clandestina"–, foi traduzido para o português pelo jornalista José Geraldo Couto (sob a aprovação de Moser, falante da nossa língua) e editado pela Cosac Naify, com novo título: Clarice, (terminando com a vírgula, como começa o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres).

Por aqui, a publicação tende à polêmica. Antes de tudo, presume-se, pelo fato de um estrangeiro (e ainda jovem) se apossar da mais importante escritora de nossa literatura. E mais porque é ousado. Moser faz um "ensaio biográfico" (palavras de Ruy Castro ao criticar a obra), no qual a vida interior da autora tem mais espessura do que o calendário dos fatos – e extrai deles sentidos íntimos.

Seu lance mais arriscado (le­­via­­no, segundo opositores) foi afir­­mar o que se considerava apenas hipótese: o estupro sofrido por Ma­­nia, mãe de Clarice, durante um pogrom (ataque brutal contra judeus que, frequentemente, terminava em abusos sexuais e morte) na Ucrânia.

Não há qualquer relato categórico do caso, mas, baseado em uma "pesquisa minuciosa", que incluiu "fontes anônimas" (leia a entrevista com Moser na página 2), o biógrafo se convence da veracidade do ato de violência. E tira suas conclusões. Mania teria contraído sífilis no episódio e a gravidez de Clarice seria uma tentativa de curá-la da doença, seguindo crenças populares de que o parto teria esse poder purificador. Acontece que o nascimento da terceira filha não impediu a mãe de sucumbir à paralisia e morrer quando a menina tinha 10 anos.

Nascida para salvar uma vida, Clarice falhou. "Toda história de uma pessoa é a história de seu fracasso", escreveria mais tarde.

Desse fracasso primordial, sugere Moser, aflorou um sentimento de culpa e uma consciência de que o mundo, ou a vida (aquela mesma que castigara seus pais com pobreza e violência, obrigara-os a se tornarem fugitivos por serem judeus, roubara-lhes as chances de realização e felicidade e, por fim, matara-os cedo), não atendia a qualquer lógica racional nem obedecia aos padrões de bem e mal do Deus das religiões. Emer­­giria daí a imensa aflição existencial da autora, que confrontou a vida e olhou para dentro de si mesma a cada escrito.

Clarice, entrelaça períodos da vida da biografada ao que ela então escrevia – sempre irremediavelmente pessoal. O mesmo expediente havia si­­do adotado pela brasileira Nádia Batella Gotlib na biografia Clarice, uma Vida Que Se Conta, de 1995, citada entre as fontes de Moser.

Depois da paixão impossível pelo escritor mineiro Lúcio Cardoso, homossexual, o casamento de Clarice com o diplomata Maury Gurgel a levaria a longos e dolorosos períodos vivendo no exterior e convivendo com mulheres com as quais pouco tinha em comum, o que faz da escritora uma domesticada dona de casa, assim como a Lídia de Perto do Coração Selvagem, seu aclamado romance de estreia em 1943. A comparação expõe a fissura daquela mulher: Ao mesmo tempo que se assemelha a Lídia, Clarice inquietava-se como Joana, a selvagem protagonista do mesmo livro, descrente do casamento.

Entre os fatos relevantes da biografia, estão ainda o nascimento dos dois filhos e a descoberta de que um deles sofria de esquizofrenia, quadro com o qual Clarice tinha dificuldade de lidar. O divórcio, as amizades conquistadas e perdidas, os altos e baixos no mundo editorial, as épocas de depressão e renovações. Um último amor, proibido, foi o também escritor mineiro Paulo Mendes Campos, casado.

Todos esses fatos são acompanhados de uma contextualização abrangente, que conta a história do Brasil falando dos pracinhas, da ditadura, da cena literária, da vida carioca. Mais que isso, são vistos do modo como atingiram Clarice, a quem um psiquiatra classificou como alguém de sensibilidade ampliada, que sentia com amplitude as dores do mundo e de todos.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]