Lembro de Leminski brincando ao me convidar para pernoitar em sua primeira casa no Pilarzinho, a que tinha sótão:
Se você não se incomodar de dormir cercado de obras-primas...
Em redor da cama no sótão, empilhavam-se seus primeiros livros, publicados por conta própria ou custeados por agências onde ele trabalhava. Com a cabeça polacamente rodando de vodka com cerveja, folheei até dormir. De manhã, ele já estava na sala tomando café e notas. Perguntei se ia publicar mais um livro, soltou aquele suspirão que fazia tremer os bigodões, e disse que precisava lançar um de verdade:
Um livro que pare em pé.
Assim, com um chavão, definiu o dilema da poesia marginal daqueles tempos de ditadura e mimeógrafo, quando a repressão fazia aumentar o interesse pelas publicações marginais, mesmo as que não tivessem caráter político. A facilidade de publicação equivalia à carência de qualidade e à precariedade ou mesmo inexistência de distribuição (como hoje na internet, onde é tão fácil e rápido colocar poesia, que entretanto pode ficar sem leitores, a não ser que o autor tenha talento...).
Publicávamos como os ratos famintos procriam! Alguns vendiam os livretos ou mesmo apostilas poéticas em bares, de mesa em mesa, configurando um tipo de chato cultural que virou símbolo de época. As primeiras edições de livros de Augusto dos Anjos, Drummond, Bandeira e João Cabral, apenas como exemplos, também tinham poucas centenas ou mesmo apenas dezenas de exemplares, mas eles não iam vender em bares ou fila de cinema, e, no entanto, tornaram-se ícones da poesia brasileira, decerto não por terem começado com edições marginais mas por terem talento.
Chegamos a montar a Cooperativa de Escritores, 20 malucos de várias cidades, com o compromisso de custear novos livros com a renda dos livros anteriores. Mas um dia, em São Paulo, depois de vender livros em filas e bares, a turma resolveu investir o dinheiro em... cerveja. Acabou a cooperativa, nisto simbolizando a transitoriedade daquela marginalidade que se especializava em piedosa auto-promoção.
É claro que posar de poeta também auferia prestígio entre a moçada pioneira da pílula, e muitos "poetas" marginais queriam mais era literalmente se enfronhar. Claro também que poemas inicialmente xerocados e passados de mão em mão, acabaram musicados e assim conhecidos nacionalmente, passando de marginais a patrimônio cultural.
A poesia marginal simplificou o velho ditado de que é preciso ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Bastava escrever alguns poeminhas, imprimir ou xerocar e grampear. O resultado não precisava parar em pé. Não precisava ter qualidade para perdurar. Era a onda do momento. Mas que onda! Como, conforme Marx, a qualidade evolui da quantidade, da poesia marginal resultaram verdadeiros poetas, no entanto superando a marginalidade como resultado mesmo da qualidade ou como condição mesma para se qualificar.
Assim como o poema-piada dos pioneiros modernistas desmitificou a poesia, abolindo a necessidade de temas nobres ou solenes, a poesia marginal aboliu a imprensa industrial. Mas, muitas vezes, foi mais comercial que o mercado livreiro: alguns "poetas" vendiam por 10 moedas o que tinha custado uma... (margem de lucro? Não: avenida de lucro). Isso contribuiu para que a generosa piedade do público baresco-cultural se transformasse em rejeição, decretando a morte por inanição da poesia marginal, já debilitada pela carência de qualidade, com os talentosos já evoluindo para "livros que parem em pé".
Mas dá saudade. Ah, que gostosura era sentar para tomar uma cerveja e, quando aparecesse o primeiro poeta marginal a margear pelas mesas oferecendo sua obra-prima, sacar um livrinho da bolsa e retrucar:
Compro o seu se você comprar o meu!
Talvez essa regressão ao mercado de troca, devido à abundância de oferta, também contribuiu para matar a poesia marginal. Dá até para fazer um poeminha-epitáfio trocadilhesco típico da época:



