
"Mas isso aconteceu mesmo?" A pergunta sintetiza à perfeição o que parece, hoje, mais interessar a quem ouve, assiste ou lê uma história boa ou ruim, até nem importa.
Particularmente quando o assunto é livro, se há uma preocupação que pode ser elevada à categoria de certo espírito de época, é essa obsessão dos leitores com a encruzilhada em que se tocam ficção e "verdade", invenção e "realidade" ou biografia. Ou, em suma, uma curiosidade sem fim pelo que separa "história" de "estória", como se costumava ensinar na escola de antigamente.
A rigor, conforme registra o dicionário Houaiss, a segunda palavra, "estória", é apenas um termo antigo ou regional que designa uma "narrativa em prosa, fictícia ou não, com o objetivo de divertir e/ou instruir o ouvinte ou leitor", em oposição à mais séria e grave "história" como no inglês em que story é diferente de history. Para não falar da temida "História", a dos grandes feitos e das provas escolares. Paradoxo dos paradoxos, é este, com agá, o tipo de narrativa que o "leitor médio" aquele que se guia pelos expositores das grandes livrarias prefere comprar e consumir como passatempo...
Mas, para além do fenômeno editorial, os cruzamentos entre ficção e não-ficção parecem ser, nesta primeira década do milênio, o terreno artístico mais fértil no campo das letras. Isso vale tanto para os discursos de "verdade" que tomam de empréstimo as armas da ficção, como acontece no chamado "jornalismo literário" embora hoje menos do que décadas atrás ; quanto para certa tendência do romance contemporâneo a se basear na história (ou História) e na biografia (ou autobiografia); como, ainda, para os gêneros híbridos do ensaio em alta nas rodas intelectuais do país e da crônica, uma especialidade brasileira desde sempre.
Principal nome da reportagem literária, hoje, no Brasil, a gaúcha Eliane Brum, repórter especial da revista Época e autora das coletâneas A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago) e O Olho da Rua (Globo), acha que no jornalismo "é possível escrever um texto tão rico que o leitor pode ler com o prazer de uma ficção". Com a ressalva: "Mas não tem nada inventado. Por isso dá muito trabalho fazer bom jornalismo, porque todas as informações têm de ser precisas".
No início do mês, participando em Curitiba de um evento que discutiu exatamente as relações entre literatura e jornalismo, Eliane foi categórica: "Em jornalismo, não há milagre. Sem apuração, não existe bom texto". E ilustrou: "Em uma matéria sobre um crime, entrevistei cinco moradores diferentes de uma mesma cidade e consultei três serviços de meteorologia só para poder afirmar, em um terço de frase, que fazia sol quando o crime foi cometido".
Do outro lado
Mais complexo e difícil de avaliar é o movimento do outro lado daquela fronteira ficção/não-ficção. O fato ou personagem histórico estão, por exemplo, tomando de assalto os romances nacionais e estrangeiros muitos deles de grande qualidade como ficção, pura e simplesmente. Outro escritor-jornalista a ter discutido o tema em Curitiba, há poucas semanas, foi Sérgio Rodrigues, responsável por um dos mais influentes blogs de literatura do país, o Todoprosa, e autor de Elza, a Garota. O livro, um dos bons romances brasileiros lançados este ano, conta a história de uma adolescente, namorada de um dirigente do Partido Comunista Brasileiro nos anos 30, que acabou julgada, condenada como espiã e friamente executada pela alta cúpula da organização.
A princípio um livro-reportagem a ser escrito por encomenda, a história virou ficção nas mãos de um escritor talentoso felizmente, a editora aceitou abandonar o projeto inicial. Rodrigues explica por que, a certa altura da pesquisa sobre a personagem, assumiu o livro como romance: "Não acho que faça sentido usar a ficção como simples adorno de um relato não-ficcional. Por natureza, ela me parece um discurso mais forte, mais revelador e mais ousado". Até porque o gênero escolhido por ele é das mais versáteis formas artísticas já inventadas: "O romance pode incorporar desde um discurso histórico, jornalístico ou biográfico até uma receita de bolo ou um manual de taxidermia. Se for bem resolvido como romance, romance será", define.
Por fim, há uma suposta onda, fomentada em particular por escritores de língua inglesa e caracterizada por um recurso do qual todos eles parecem lançar mão em doses generosas o de contar em seus livros as próprias experiências pessoais e, assim, obter recordes de vendagem. Best sellers ao redor do planeta, esses autores abusariam, segundo seus críticos, de uma estratégia comum no mundo das celebridades, no qual a invasão de privacidade é a alma do negócio. Alguns até acabam desmascarados como falsificadores da própria história ironia, já que todo escritor, por definição, é um "falsário".
É verdade que existem afinidades entre Dave Eggers e Zadie Smith, Jonathan Safran Foer e Nick Hornby alguns dos autores americanos e ingleses que tangenciam as próprias biografias (quando não mergulham nelas) ao criar ficção. Mas são escritores que se situam muito além dos clichês e escândalos desta nossa era do espetáculo. O fato de venderem tão bem quanto aquelas obras de, vamos dizer, gosto duvidoso que se publicam aos montes por aí biografias e autobiografias, com toques de autoajuda, em que estrelam os "ricos, famosos e bem-sucedidos" pode até convidar a uma comparação. Má comparação, de todo modo.
Ao fundo, uma questão que parecia apaziguada na literatura: a das marcas autobiográficas na ficção. Afinal, qual é o autor, na história do romance moderno, que não recorreu à própria história de vida? Faz mais de século e meio que Flaubert, a respeito de sua imortal personagem, afirmou: "Madame Bovary sou eu". Quando o desafio é trabalhar no limite da associação entre narrador/personagem e a biografia do autor "pessoa física", há casos grotescos, ainda nesta década, como os da francesa Lolita Pille (Hell e Bubble Gum) e da italiana Melissa Panarello (100 Escovadas Antes de Ir para a Cama); mas também obras-primas, como o romance brasileiro mais aclamado e, vale lembrar, mais vendido dos últimos anos: O Filho Eterno, de Cristovão Tezza.



