
O recente sucesso de vendas de Toda Poesia, de Paulo Leminski (Companhia das Letras, 2013), e a exposição Múltiplo Leminski, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, colocaram o poeta paranaense em circulação, jogando luz sobre sua obra, que se encontrava meio à margem do debate literário. Em um poeta com o domínio da mecânica do mundo pop, com lances existenciais tratados com recursos de marketing, era natural uma pressão de seus leitores para usufruir não apenas da obra, mas também da trajetória de vida.
Nasceu um novo interesse pelo livro Paulo Leminski: o Bandido Que Sabia Latim (Record, 2001), de Toninho Vaz, a única biografia disponível do poeta. Mas a família não renovou a autorização para a quarta edição deste livro que sairia pela Nossa Cultura, de Curitiba , pois está interessada em construir outra abordagem biográfica. Nesse sentido, a mesma editora havia convidado Domingos Pellegrini para a empreitada, que aceitou num primeiro momento, mas depois desistiu. Por conta própria, no entanto, o ficcionista resolve se dedicar a uma narrativa solta e independente, uma recordação livre sobre suas conversas com o amigo morto. A família também se recusa a autorizar a publicação desse livro por entender que ele denigre a imagem do poeta. Domingos, revivendo os anos de 1970, quando os textos circulavam fora do sistema editorial, espalha milhares de cópias pela internet.
Questões jurídicas
Para além das questões jurídicas de direito de expressão e de direito de privacidade, algo que o Brasil tem de resolver de forma urgente, tentemos entender o livro e-mail de Domingos Pellegrini: Passeando por Paulo Leminski (sem editora, 2013).
A primeira observação é sobre a forma: não se trata de uma biografia. O livro é o reencontro de dois amigos, uma longa conversa que eles acabam tendo no espaço ficcional da escrita. Depois de anos, Domingos e Paulo se reúnem novamente para continuar as falações de sempre. Teremos, em todo o volume, duas vozes, a do Leminski em itálico e a de Pellegrini em fonte normal. As vozes começam independentes, cada um com seu universo lexical. O Leminski-personagem (tratado como Polaco) usa muitos neologismos e trocadilhos e fala de sua própria vida de uma maneira leminskiana. Domingos-personagem (apresentado como Pé Vermelho) tem uma voz mais serena nessas primeiras páginas, fazendo assim um contraponto. Aos poucos, no entanto, as vozes vão se misturando, para terminar com Domingos tomando a palavra apenas para si, e falando no mesmo tom exaltado nos dois espaços narrativos. A fala de Paulo no final já não é mais distinta, é um eco da fala de Pellegrini. O que era dois virou um só. Está aí a beleza estrutural e afetiva do livro.
Estrutura
Mas há ainda outra aproximação: Passeando por Paulo Leminski se apropria de maneira amorosa à estrutura das biografias que Leminski fez de Jesus Cristo, Cruz e Sousa, Bashô e Trotski (reunidas em Vida Sulina, 2ª. edição, 1998, relançado agora pela Companhia das Letras). É também uma forma de homenagear o amigo por meio de seu jeito desabusado, meio guerrilheiro de escrever. Assim, o relato de Pellegrini talvez fosse a maneira como Leminski escreveria sobre o próprio Leminski ou sobre o Pellegrini é um livro essencialmente egótico.
O que se narra neste livro? Domingos fala sobre tudo, nesta teorização sem limites, que vai de interpretações de sonhos a análises das traduções de Leminski. Mas o centro é o estado de camaradagem entre os dois, uma camaradagem bélica, de dois egos em competição, que se dá em torno da bebida, pois foi num ambiente de cigarro e álcool que aconteceu a maior parte dos contatos entre os dois. O título então poderia ser Bebendo com Paulo Leminski. Esta forma de ler a vida do poeta é também amorosa, mas reforça os estereótipos sobre ele, principalmente o heroísmo do suicídio pelo álcool. E Leminski não era só o homem que bebia continuamente, embora esta seja uma face real e importante dele.
Memórias
Com certeza, o autor tem outras memórias de Leminski, com quem conviveu intensamente, mas Domingos talvez tenha optado por silenciar coisas para preservar a intimidade do poeta. Também seria interessante reproduzir a polêmica série de artigos no jornal O Estado do Paraná, em 1974, quando os dois escritores se enfrentaram, pois é um momento forte do contato entre eles. Só depois passariam a se entender, mas sempre no mesmo clima de disputa.
Esta natureza de guerra de egos cria uma falsa impressão em quem lê, de certo cabotinismo de Pellegrini, que insiste em mostrar Leminski elogiando o seu trabalho, dizendo que gosta de Pé Vermelho, que o inveja.
Editados e acrescidos de mais episódios, estes originais on-line podem render um valioso documento de duas personalidades fortes.




