
"Seu Garçom, faça o favor de me trazer depressa, uma boa média que não seja requentada." Os versos do samba "Conversa de Botequim", parceria de Noel Rosa com o pianista Vadico, ocupam a primeira faixa do lado A do fascículo n.º 1 de uma coleção de discos que marcou profundamente a história da música e do mercado fonográfico brasileiros. E foi fundamental para formar e influenciar algumas gerações de ouvintes e instrumentistas da nossa música.
Lançada no primeiro trimestre do ano de 1970, a coleção História da Música Popular Brasileira foi uma série de 48 fascículos que consistiam em um LP de dez polegadas encartado em um caderno de textos e imagens que biografavam a vida e a obra de um grande compositor brasileiro.
Os discos continham gravações selecionadas, com grandes intérpretes de várias épocas e algumas inéditas feitas especialmente para a série. Com um primoroso trabalho de pesquisa e apresentação, o grande charme dos fascículos eram os encartes com direção de arte do paranaense Elifas Andreato.
Pequenos livros ilustrados de 12 páginas que misturavam biografia, ensaio e crítica musical e que hoje são alguns dos principais documentos históricos da música brasileira do século 20.
A série foi relançada e ampliada em 1976 com o nome de Nova História da Música Brasileira e durou até o ano seguinte. Foi ainda distribuída uma terceira vez, em 1982, quando a Abril encerrou o exitoso projeto editorial de venda de obras em fascículos em bancas de revista.
"Acho que as três séries lançadas compõem um painel completo de uma época importante da cultura popular brasileira através da escolha certeira dos compositores revisitados", afirma o professor Álvaro Carlini, do departamento de música da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Carlini também destaca a influência que a coleção teve nas gerações seguintes, que puderam apreender temas e nomes que estavam dispersos na música brasileira. "Grande parte da minha geração que hoje tem cerca de 50 anos aprendeu e redescobriu elementos da música naquelas idas às bancas de jornal. Na época, era como descobrir o Santo Graal", compara.
O jornalista carioca Tárik de Souza, um dos mais importantes e recorrentes colaboradores do projeto, afirma que a coleção tem atualmente "uma dimensão ainda maior pela dificuldade de se realizar este trabalho hoje, com tantas limitações burocráticas e jurídicas". Tárik lembra que a ideia do projeto partiu da Abril Cultural, segmento da editora que publicava na época uma série de fascículos de temáticas diversas e resolveu incluir entre elas a música. Comandavam o projeto os executivos Pedro Paulo Popovic, Ary Coelho e Balfour Zapler.
"Logo de saída, eles enfrentaram uma objeção das gravadoras, que não queriam a concorrência dos discos vendidos em banca", relembra Tárik.
Para solucionar a restrição, a Abril Cultural trabalhou com um formato diferente de disco. Ao invés do LP clássico de 12 polegadas (e doze faixas, seis em cada lado), de uso corrente desde 1958, a série de fascículos teve de se contentar com uma volta ao antecessor de 10 polegadas, de apenas oito faixas, para se diferenciar dos discos de mercado da indústria.
Estes primeiros números custavam Cr$ 7 (cerca de R$ 30 hoje em dia, de acordo com ferramentas de correção monetária do Banco Central). Atualmente, os fascículos são encontrados em sebos, com valores entre R$ 10 e R$ 15.
Rigor
A seleção de repertório e a produção dos textos dos fascículos foram entregues a pesquisadores, jornalistas e críticos renomados da época e, em regra, explicavam a origem dos artistas e dos ritmos e gêneros que eles representavam no espectro artístico e social do país.
Entre os colaboradores, figuras como José Lino Grünewald (1931-2000), José Ramos Tinhorão, Júlio Medaglia, Almirante (1908-1980), Aracy de Almeida (1914-1988), Augusto de Campos, Capinan, Ezequiel Neves (1935-2010), Fernando Faro, Lúcio Rangel (1914-1979), Miécio Caffé (1920-2003), Rogério Duprat (1932-2006), Sérgio Cabral e outros.
O rigor das pesquisas era tamanho que o fascículo dedicado a Pixinguinha, por exemplo, que incluía a gravação "Samba de Negro", foi contestado pelo próprio compositor. "Pixinguinha disse que a música não era dele. Só se convenceu quando lhe apresentamos o número da matriz da gravação que comprovava sua autoria", lembra José Lino Grünewald no livro Abril: Os Primeiros 50 Anos (Abril, 2000).
Os encartes traziam ainda novidades sobre a vida pessoal e personalidade de cada músico, além de fotos de família e belas ilustrações, geralmente produzidas por Andreato e Luis Trimano. Cada uma das gravações era minuciosamente analisada, com detalhes técnicos e reprodução das letras.
Quando, em 1976, a Abril voltou a carga com uma segunda coleção, seu então presidente, Roberto Civita (1936-2013), assinou no primeiro fascículo uma carta do editor em que resumia a empreitada: "Caro leitor, em 1970-1972, a Abril Cultural produziu um antológico documento: a História da Música Popular Brasileira, narrada ao longo de 48 fascículos enriquecidos com discos que continham o principal da obra dos compositores biografados. A criteriosa seleção desses nomes permitiu a formação de um elenco de autores, que sempre representará uma síntese fiel editorial e fonográfica das origens e do desenvolvimento da nossa música popular (...)."
De acordo com Tárik, esta segunda série incluiu também autores considerados bregas, mas de grande alcance popular, como Adelino Moreira, Evaldo Gouveia e Jair Amorim, quebrando alguns paradigmas críticos ainda vigentes.
Sucesso e bruxas
Segundo Tárik, durante a execução do projeto a equipe percebeu a "importância histórica da coleção e se esforçou para ampliar o espectro de autores biografados". Ele recorda que, ao lado de Elifas Andreato, "que era o diretor de arte, mas também opinava nas escolhas, comprei uma briga com o representante da gravadora RCA que prensava os discos". A ideia da dupla era incluir na primeira série um fascículo dividido entre as obras de Cartola e Nelson Cavaquinho.
"O executivo do disco não queria, porque achava a escolha coisa de intelectual, sem repercussão popular", conta. Mesmo assim, a equipe bateu o pé e conseguiu lançar o disco. "O resultado foi que na coleção seguinte, já em 1977, saíram um disco para Nelson Cavaquinho e outro para Cartola, tal o êxito de vendas e o reconhecimento da obra de ambos", comemora.
A coleção fez um sucesso estrondoso não há um número oficial, mas estima-se que alguns milhões de discos tenham sido vendidos. Mesmo artistas considerados pouco "populares", como Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo tiveram ótimas vendas.
No caso de Vandré, Tárik de Souza lembra que quando escreveu o texto, o cantor estava no exílio e seu nome era proibido em toda a imprensa. "Entrevistei seus familiares e consegui furar o cerco, falando de suas atividades fora do Brasil. Veio uma carta do Exército pedindo a cabeça dos realizadores do fascículo, dizendo que eram comunistas infiltrados. Mas não houve a pretendida caça às bruxas", revela.
Coleção inspirou e influenciou músicos e pesquisadores
Nas bancas de jornal, na ponta das agulhas da vitrola da sala de casa, em velhos baús familiares ou em sebos a descoberta dos discos das coleções da editora Abril provocaram epifanias em futuros músicos e fãs de diferentes gerações ao apresentar-lhes compositores como Assis Valente, Ary Barroso, Lamartine Babo, Cartola, Candeia, Silas de Oliveira, entre outros.
"Estes discos eram o que meu pai ouvia quando éramos crianças. Conversa de Botequim, do Noel [Rosa], era daquelas que eu e meu irmão pedíamos para repetir oitocentas vezes e sabíamos de cor", lembra o cantor e compositor Caio Marques.
Vocalista da banda Gente Boa da Melhor Qualidade, com mais de quinze anos de estrada tocando um repertório de sambas antigos, grande partes deles coletada nos fascículos da Abril, Marques salienta que o grupo não existiria sem as coleções.
"O fato é que aqueles discos eram acessíveis a todos, frequentávamos a casa dos amigos e sempre tinha um fascículo lá. De certa maneira, ter uma educação musical nos anos 1970 e 80 significava ter contato com essa coleção", afirma.
Já o professor da UFPR Álvaro Carlini conta que o material teve grande influência em sua trajetória de músico e pesquisador. Para ele, o país seria culturalmente mais pobre sem a iniciativa de colocar este material de ótima qualidade em bancas de jornal com preço acessível a quase toda a população. "Os editores acertaram a mão e este projeto foi essencial para todo mundo que gosta de música", analisa.






