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Nem o sujeito mais pedante vai assistir a um blockbuster esperando uma aula de história, mas "300 de Esparta", o épico estrelado por Rodrigo Santoro sobre o confronto entre gregos e persas no ano 480 a.C., abusa do direito à licença poética. O ator brasileiro interpreta Xerxes, o Grande Rei dos persas, e a maneira como o personagem é retratado andou enfurecendo o governo do Irã, país que é herdeiro direto da antiga Pérsia. A fúria tem certa razão de ser: do figurino às motivações políticas, o Xerxes do brasileiro não tem quase nada a ver com a sua contraparte histórica.

O Grande Rei não é o único a virar caricatura em "300 de Esparta". Em parte, a culpa é dos belos e exagerados quadrinhos do americano Frank Miller, nos quais o filme se inspirou. Para ressaltar o heroísmo dos gregos da cidade de Esparta, que ousaram se opor às forças muito superiores do Império Persa, Miller os transforma num bando de kamikazes, que teriam decidido se sacrificar desde o começo para inspirar as outras cidades da Grécia a resistir ao invasor. "É uma polarização extrema entre mocinhos e bandidos que distorce um bocado a situação real", resume o historiador britânico Paul Cartledge, da Universidade de Cambridge.

Em 480 a.C., o primeiro combate aconteceu no desfiladeiro das Termópilas, espremido entre as montanhas e o mar no centro-norte da Grécia. Cerca de 7.000 gregos, comandados por 300 espartanos e seu rei Leônidas (Gerard Butler, no filme), foram mandados para fazer frente a 120 mil homens do Império Persa, liderados por Xerxes.

Santoro aparece pela primeira vez numa conversa entre os dois reis, e seu visual é de arrancar os cabelos – se ele tivesse algum, claro. De cabelos (e pêlos) raspados e tanga dourada, o ator brasileiro parece uma estante de piercings, tamanha é a quantidade de adereços metálicos em seu rosto. O look é completado por longas unhas douradas e altura de uns 2,5 m. Primeiro problema: um rei persa depilado era uma coisa impensável. "O rei sempre tinha um bigode e uma longa barba; no caso de a natureza negá-los, dispunha de perucas e bigodes falsos", diz Barry Strauss, historiador da Universidade Cornell (EUA). Em público, os soberanos persas sempre usavam longos mantos de cor púrpura, capas douradas, uma espada e diadema (coroa) real.

Os exageros na vestimenta ou falta dela ficam pequenos diante da personalidade de Xerxes no filme. Ele se declara, por um exemplo, um deus – coisa que um rei persa de verdade provavelmente acharia um sacrilégio, já que a religião do antigo império era quase monoteísta. Os persas adoravam um deus supremo, Ahura Mazda, que não tinha nada de humano.

O Grande Rei em "300 de Esparta" também é um covarde que quase desmaia ao ver o próprio sangue. No mundo real, Xerxes deixou uma inscrição com os seguintes dizeres: "Sou capaz nas mãos e nos pés. Como cavaleiro, sou um bom cavaleiro. Como arqueiro, sou um bom arqueiro, tanto a pé como a cavalo". É claro que poderia ser só propaganda, mas antes de invadir a Grécia ele havia tido uma carreira militar vitoriosa, derrotando o Egito e a Babilônia, que tinham se rebelado contra ele.

Do ponto de vista político, embora a Pérsia realmente pretendesse acabar com a autonomia das cidades-Estado gregas, Xerxes estava longe de transformar a vida de seus súditos num inferno metrossexual. Pelo contrário: para muitas regiões da Ásia, o domínio persa trouxe estabilidade e paz pela primeira vez.

"Os persas construíram estradas e palácios, hotéis e até parques. Codificaram leis e criaram o primeiro sistema amplo de cunhagem de moedas", diz Strauss. Por outro lado, 300 acerta em mostrar que os reis persas tinham uma imagem megalomaníaca de seu papel no mundo. Outra das inscrições oficiais de Xerxes, por exemplo, diz o seguinte: "Um grande deus é Ahura Mazda, que fez esta terra, que fez o homem, que fez a paz para o homem; que fez de Xerxes rei, um só rei de muitos, um só senhor de muitos". E, como ninguém é de ferro, o harém de beldades seminuas que acompanha o Grande Rei no filme não está muito longe da verdade: os nobres persas costumavam levar suas concubinas a tiracolo durante as guerras.

A cidade dos Macho Men

Como contraste com o efeminado Xerxes que irritou os aiatolás, os soldados de Esparta, no filme, são o símbolo máximo da macheza. Mas a gana de retratá-los como os guerreiros mais durões do planeta acaba produzindo muitas bobagens e alguns momentos de humor involuntário.

Para começar, apesar do acerto em mostrar a capa vermelha, a lança e o escudo (partes básicas do kit de batalha espartano), Leônidas e seus homens passam o tempo todo com o tórax musculoso de fora. Além dos riscos óbvios de combater desse jeito (os espartanos de verdade eram espertos o suficiente para usar uma armadura peitoral), é muito improvável que um grego do ano 480 a.C. tivesse esse físico. E por uma razão muito simples: a dieta helênica tinha pouquíssima proteína animal (e certamente nenhum anabolizante). O espartano médio devia ser baixinho e robusto, com físico de maratonista, e não de Mister Universo.

O filme também mostra os meninos espartanos sendo tirados da mãe a partir dos sete anos de idade e passando pelo rigoroso treinamento militar (com espancamentos e combates corpo a corpo) que os transformaria nos soldados mais famosos da Grécia. Só há um porém: não se sabe se esse sistema draconiano (conhecido como a agogué, "criação") já existia na época da batalha das Termópilas.

"Há indícios de que ele surgiu tarde em Esparta", diz Robin Osborne, historiador da Universidade de Cambridge. "O problema é que só temos uma descrição completa feita por Xenofonte, que escreve por volta do ano 400 a.C.", completa Cartledge. De qualquer maneira, nem Xenofonte diz que menininhos de sete anos lutavam até ficar ensangüentados: segundo ele, o treinamento de combate só começava na adolescência.

Assim como no caso de Xerxes, as cenas de Esparta têm seus momentos de acerto. O papel relevante desempenhado por Gorgó (Lena Headey), a mulher do rei Leônidas, ajuda a mostrar como a condição feminina em Esparta era bem melhor do que nas outras cidades gregas. E, embora não estivessem lutando contra um monstro desalmado, os espartanos de fato ajudaram a preservar a civilização grega e permitir que ela chegasse a seu auge, no primeiro experimento de liberdade política e pensamento da história humana.

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