
Paulínia, São Paulo - O nome São Paulo Companhia de Dança é burocrático, como fizeram questão de frisar os jornalistas no debate que sucedeu a exibição do mais recente documentário de Evaldo Mocarzel, no Paulínia Festival de Cinema 2010, no domingo passado. Ainda mais para este cineasta com produções poeticamente intituladas como Do Luto à Luta (2005) e À Margem do Concreto (2006). Mas o filme que flagra os passos iniciais da São Paulo Companhia de Dança, criada em 2008 pela Secretaria de Estado da Cultura do Governo de São Paulo, é certamente um dos mais plásticos deste documentarista que, por muitos anos trabalhou como editor do "Caderno 2", do jornal O Estado de São Paulo.
Por influência do jornalismo, a palavra sempre teve peso em sua cinematografia. Até que no documentário Quebradeiras (2009), ele rompe com sua própria escrita cinematográfica em busca de um tom mais poético para revelar o universo das quebradeiras de coco do Maranhão. A palavra, neste filme, se resume aos cantos típicos daquela região entoados pelas mulheres. Neste documentário que acompanha os ensaios do espetáculo Polígono, do italiano Alessio Silvestrin, primeira criação da companhia de dança, Mocarzel criou uma lei ainda mais radical: a absoluta ausência de palavras. "Sou um cara bom de papo, mas acho que meus filmes têm funcionado mais depois de calar a boca", conta.
Apaixonado pela dança, Mocarzel desejava produzir um documentário que, ao invés de revelar cada passo da realização de um espetáculo, fizesse o inverso, desconstruindo o processo somente com imagens embaladas por música. "A palavra sempre me agrediu na dança, que é uma linguagem tão primitiva e tão contemporânea. Queria compreender aquela coreografia pela ação", diz. Para isso, a equipe acompanhou durante um mês os ensaios, as aulas de pilates e os intervalos para registrar muito de perto o cotidiano intenso dos bailarinos na sede da companhia.
E "de perto" significou, até mesmo, acoplar a câmera aos próprios bailarinos. Foram criadas duas traquitanas que possibilitaram, pelo seu tamanho diminuto e leveza, a criação de "uma sinfonia do corpo": uma body cam, que os bailarinos usavam nos braços, e uma câmera de segurança posicionada na coxa. Mocarzel frisa que o documentário, feito inteiramente com equipamento digital, é "90% observacional".
"Filmamos muito, mostramos o tempo real da criação coletiva da coreografia", conta o diretor. Com total liberdade inventiva, os fotógrafos brincaram à vontade: há inúmeros planos-detalhes dos pés cheios de calos e bolhas dos bailarinos, da delicadeza das mãos em movimento, dos rostos tensos, dos corpos suados; cenas filmadas em contraluz, aproveitando os imensos janelões da sala de ensaio que dão respiro ao ambiente claustrofóbico; com tripé ou câmera na mão.
Movimentos contínuos
Com mais de cem horas de imagens, Mocarzel chamou Marcelo Moraes para dar conta do maior desafio do filme: a montagem. "Este é um filme de montagem", diz o diretor. Mas, a parceria de longa data quase acabou em briga quando Moraes descobriu quais eram as "más intenções" do cineasta. "Queria fazer o filme inteiramente construído em falso raccord, ou seja, em falsa continuidade de movimento", conta.
Novaes se negou, a princípio, alegando se tratar de uma camisa de força para o trabalho de montador, mas acabou cedendo em realizar o esforço sobre-humano de unir diferentes cenas com tal suavidade que elas parecem ter sido filmadas em sequência. O efeito é o de uma fluência impressionante tal como na dança.
Ao desconstruir o processo de elaboração da coreografia da companhia, misturando cenas dos ensaios e do espetáculo, o filme invade a linha que separa documentário e ficção. "Estou me aproximando cada vez mais da ficção", diz Mocarzel, que se exercita escrevendo peças de teatro e foi convidado por diversas companhias de São Paulo para realizar documentários como, por exemplo, o díptico BR-3 (2009), respectivamente, registro e documentário sobre a peça de Bernardo Carvalho com montagem de Antônio Araújo. "Há um interesse no veio documental, no registro, mas também em ver as peças desconstruídas", diz.
Trilha de torções
Além da montagem, a trilha sonora é outro elemento fundamental no filme sobre a São Paulo Companhia de Dança, desde a abertura, que antecede os créditos, um belo pas-de-deux em que a sala gira ao redor dos bailarinos ao som de Beethoven. O diretor queria um filme que arfasse, assim como arfam os dançarinos em sua rotina extenuante, e a música de ruídos composta especialmente para o filme por Thiago Cury e Marcus Siqueira contribuiu para criar uma tensão quase insuportável.
Mocarzel queria uma "trilha de torções" para momentos como quando os bailarinos revelam à câmera, já inserida no ambiente a ponto de passar despercebida, o sofrimento causado pela dor corporal gerada por tantas horas de prática. "Não existe nada mais feio do que o pé de uma bailarina, mas elas me abriram as portas, acharam importante mostrar que aquela atmosfera glamourosa da dança, de sílfides, é construído com rigor espartano", diz.
A repórter viajou a convite do Paulínia Festival de Cinema




