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O Nike HyperAdapt 1.0, primeiro tênis do mundo com cadarços que se amarram sozinhos | /Divulgação
O Nike HyperAdapt 1.0, primeiro tênis do mundo com cadarços que se amarram sozinhos| Foto: /Divulgação

Foi com uma mistura bizarra de graça e horror que eu li o artigo na Wired sobre a criação do HyperAdapt 1.0 – melhor conhecido como o tênis da Nike que se amarra sozinho. Vocês sabem qual é, aquele que vimos há 27 anos, em “De Volta Para o Futuro II”, que teve aproximadamente 12 segundos de tempo em cena.

E o que esses 12 segundos renderam?

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    “Após 28 anos de brainstorming e 11 anos de pesquisa e desenvolvimento, após muitos falsos começos, atrasos e prazos estourados, após vencermos o ceticismo interno e após inúmeros protótipos, iterações e reprojetos, os tênis automáticos que se amarram sozinhos da Nike deverão chegar às lojas neste Natal”, relatou o Wired, num artigo extenso sobre a criação do calçado e o “laboratório secreto” no qual ele nasceu.

    Não se enganem: o tênis que se amarra sozinho é um aparelhinho formidável. Você põe o pé dentro e... ele se amarra sozinho. Tem um motorzinho dentro que faz com ele aperte e afrouxe conforme necessário, poupando incontáveis segundos todos os dias. A bateria que opera esse motorzinho só precisa ser carregada uma vez por semana, conectando os tênis a uma fonte de energia através de ímãs! É incrível! É a transformação, num objeto tangível, da obsessão nostálgica da nossa cultura com os detalhes de um clássico filme Sessão-da-Tarde.

    O “Dia de Volta Para o Futuro” é uma aberração corporativa pensada para tentar trazer o que é uma sequência medíocre de um grande filme, lançada há um quarto de século, de volta aos holofotes.

    Talvez minha irritação seja injusta – há certamente algumas centenas de atletas profissionais a quem essa tecnologia pode um dia ajudar –, mas a frustração é honesta e vem crescendo em mim faz algum tempo. Ela começou no ano passado, durante o “Dia de Volta Para o Futuro”, uma aberração corporativa pensada para tentar trazer o que é uma sequência medíocre de um grande filme, lançada há um quarto de século, de volta aos holofotes.

    Ao ver que esse plano foi um sucesso, uma data comemorativa ainda mais forçada, chamada de “Dia do Alien” foi ao encontro das massas em 26 de abril – uma referência ao “LV-426”, o planetoide em que o xenomorfo de Ridley Scott foi descoberto pela primeira vez. Dá um suor frio de terror imaginar a multidão de tentativas descaradas de explorar os fãs que nos aguardam no horizonte: talvez até chegar o “Dia do Blade Runner”, em 2019, dê tempo para Elon Musk inventar replicantes de verdade para caçarmos?

    Suicídio pessoal e cultural

    Divulgação

    Nossa cultura vem se degenerando numa cultura que só tem interesse em derivar entretenimento dos prazeres dos tempos de antigamente, em fugir de nossas situações atuais – sejam elas da cultura pop ou não – e mergulhar no passado. É difícil não pensar na grande obra de David Foster Wallace, “Graça Infinita”, e o seu “Entretenimento”, que tem um papel crucial no enredo, um filme de uma beleza tão estarrecedora que faz com que qualquer um que o veja fique instantaneamente viciado em seus prazeres. O Entretenimento é um tipo de suicídio pessoal e cultural: o público é incapaz de não querer revê-lo, assistindo-o de novo e de novo e desistindo de tudo o mais que a vida tenha a oferecer.

    O romance de ficção científica “The Unincorporated Man” [“O Homem Não-Incorporado”, em tradução livre, ainda inédito em português] oferece um aviso semelhante quanto aos perigos do escapismo através do entretenimento e do passado. O livro de Dani e Eytan Kollin postula um tipo de futuro libertário em que nada é proibido – exceto por centros de realidade virtual, cujo uso obsessivo levou ao “Grande Colapso”. As pessoas simplesmente desistiram de viver no mundo real, optando, em vez disso, por definharem, imersas em narrativas falsas e relances idealizados do passado.

    A seção mais assombrosa do livro vem quando o herói do romance, Justin Cord, faz uma visita a um museu de realidade virtual e tem a experiência de como era assistir aos homens condenarem suas famílias a uma morte lenta, mas indolor, de fome, em vez de lidarem com o que o futuro poderia ter a oferecer.

    Prazeres do passado

    Divulgação

    E não é só com o vício nos prazeres da cultura pop que devemos nos preocupar. Uma das imagens mais impactantes no filme “Filhos da Esperança”, de Alfonso Cuarón, era a Arca das Artes de Nigel (Danny Huston), uma coletânea dos grandes tesouros artísticos do Ocidente. Nigel havia se cercado com as obras de uma civilização à beira do colapso para poder “preservá-las” – mas, na verdade, ele se aproveitava da beleza ofuscante dessas obras para cegar a si mesmo em relação ao caos que se desenrola do outro lado dos seus muros protegidos pelo governo. Era uma decadência clássica, um tipo de suicídio cultural amenizado pela nostalgia do que já foi.

    Nenhum de nós está imune ao encanto dos prazeres do passado. Eu mesmo senti um arrepio de felicidade quando a Nintendo anunciou que estaria lançando um “mini-NES” contendo 30 jogos clássicos de 8 bits do período inovador dos consoles de videogame. Mas devemos tomar cuidado com a quantidade de tempo que passamos apaixonados por coisas efêmeras. Tênis que se amarram sozinhos podem não ser lá muito terríveis por si só. Porém, são um lembrete físico de que estamos correndo perigo de nos obcecarmos em olhar para trás, em vez de para frente. E as civilizações têm muita dificuldade em sobreviver a esse tipo de problema.

    Tradução: Adriano Scandolara
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