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Protesto convocado pela Central Única  dos Trabalhadores na Praça Santos Andrade, em Curitiba: o “Fora Temer” é uma admissão de culpa da campanha de Dilma Rousseff. | Hugo Harada/Gazeta do Povo
Protesto convocado pela Central Única dos Trabalhadores na Praça Santos Andrade, em Curitiba: o “Fora Temer” é uma admissão de culpa da campanha de Dilma Rousseff.| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

Nos últimos anos, o verbo “lacrar” ganhou um novo sentido graças à militância de esquerda; agora ele significa “mandar bem”, “arrasar” ou algo do gênero. É como acertar o timing do “Fora Temer”, contrapor qualquer argumento daquela pessoa defensora da volta da ditadura militar ou iluminar entusiastas do “bolsonarismo” ou do “trumpismo”.

Para esse pequeno nicho, na verdade, é uma espécie de prestação de serviço gratuita: eles estão apenas lhe fazendo o favor de mostrar que você, obviamente, está errado.

O grande problema é que algumas vezes a “lacração” sai pela culatra – ou, no mínimo, é completamente contraditória com a ideologia que supostamente seguem.

A seguir, algumas vezes em que a “lacração” não caminhou ao lado do bom senso. Mas tudo bem, afinal, “lacrar” é muito mais importante do que ser coerente.

O embate entre João Dória e Amazon

Na última segunda-feira (27), a gigante da tecnologia apresentou uma peça publicitária em que perguntava “Cobriram a cidade de cinza?” enquanto exibia imagens de muros em pontos conhecidos da cidade de São Paulo, como o túnel Nove de Julho e a Avenida 23 de Maio, pintados de cinza. Em seguida são projetadas sobre elas trechos de obras de George Orwell, Carlos Drummond de Andrade e outros autores consagrados – há ainda espaço para, mais uma ótima sacada, com o best seller “50 Tons de Cinza”.

O prefeito João Dória logo respondeu no Instagram: “Acabei de assistir ao comercial que a Amazon fez para o seu produto Kindle. Já que a Amazon gosta tanto de São Paulo, gosta tanto do Brasil, ajude a nossa cidade, ajude a quem precisa, doe livros para as bibliotecas, doe computadores para as escolas municipais, doe aquilo que a população precisa, para fazer desta cidade uma cidade mais feliz”.

Diversas empresas aproveitaram a oportunidade e compraram a ideia de Dória. Mas vivemos tempos tão loucos que a turma adepta da lacração, anticapitalista, anti-imperialismo, claro, se posicionou a favor da multinacional americana, criticando as doações de livros, computadores, tablets e cursos para as escolas públicas e bibliotecas paulistanas.

Vamos defender uma instituição financeira?

Em dezembro de 2016 o governo federal anunciou o plano de reduzir o prazo para pagamento das operações com cartão de crédito para os lojistas para dois dias, e não mais 30.

A medida era semelhante à adotada na maior parte dos países e o prazo médio entre o pagamento e a compra, para o consumidor, pouco ou nada seria alterado. Ou seja, o governo propôs que as instituições financeiras pagassem com maior agilidade comerciantes e lojistas.

O Nubank, fintech que atua como alternativa aos modelos tradicionais de cartão de crédito, reagiu e ameaçou fechar as portas. “Empresas como o Nubank, que não estão associadas a grandes bancos com bilhões em caixa, seriam muito prejudicadas. E mesmo que conseguíssemos acesso a esse volume de recursos, isso colocaria em risco o nosso modelo de negócio”, justificou.

A turma das redes sociais, claro, correu defender o Nubank, esquecendo o quão benéficas seriam as novas regras para o pequeno empresário, afinal era absurdo uma startup financeira que recebeu em seus dois anos de existência R$ 600 milhões em aportes concorrer com instituições financeiras. Por outro lado, não viu nenhum problema para a pequena padaria do seu bairro aguardar 30 dias para receber.

“As provas são ilegais”, mas só quando são contra nós

O episódio da divulgação dos grampos envolvendo a ex-presidente Dilma Rousseff ainda irá gerar longos debates. Há o argumento de que o prazo para os grampos já havia estourado e, além disso, o juiz Sérgio Moro supostamente não poderia grampear e divulgar as escutas. Mas deixemos isso de lado: vale lembrar que a esquerda nacional se posicionou favoravelmente à ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) quando grampeou o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Social) durante o governo Fernando Henrique Cardoso – estes sim, inegavelmente, sem autorização –, acarretando na queda de ministros.

“Fora Temer” como confissão de culpa

Este ponto precisa ser esclarecido: não existe nenhum problema em não simpatizar com Michel Temer, é um direito de todos, desde que estejam plenamente conscientes que a cada vez que gritam “Fora Temer”, mas dizem que Dilma é inocente, estão sendo incongruentes. Deixando de lado a manobra política de Temer de tentar dissociar suas contas de campanha das da ex-presidente e considerando apenas o óbvio, que as contas são, na verdade, uma só, a cassação de Temer eliminaria qualquer margem de dúvidas quanto a culpabilidade de ambos.

Os reis do debate (mas só quando queremos debater)

Os movimentos de esquerda, historicamente, se consolidaram através do debate, da perspectiva de vencer na base do argumento quando ideias são confrontadas – o maior expoente da esquerda nacional, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, inegavelmente nunca fugiu do debate e, ao longo dos anos, aperfeiçoou sua retórica.

O grande “porém” é que tudo indica que ele não deixou legado nesta área no Brasil. E fenômenos como Brexit, a vitória de Donald Trump e ascensão dos movimentos nacionalistas na Europa nos ajudam a perceber esta falha: todos têm em comum, além do posicionamento político, um discurso que a oposição se nega sequer a debater, acusando-o de racista, xenófobo, sexista e homofóbico – a lista é ainda mais longa. Mas é preciso entender o óbvio: toda vez que a esquerda se nega ao debate, se o argumento máximo é acusar o lado oposto de “fascismo”, sai perdendo.

Logicamente é mais cômodo crer que aqueles que não seguem a mesma linha ideológica são manipulados ou simplesmente ignorados mas, de qualquer forma, toda vez que a esquerda se fecha em sua própria bolha pode até pensar que está “lacrando”. Mas, como dizem na própria gíria, não passou de “close errado”.

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