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Literatura

Herdeiro reedita memórias de Hemingway

Neto do escritor norte-americano segue anotações deixadas pelo avô para criar uma nova versão de Paris É uma Festa

Hemingway: uma das entrevistas históricas da "Paris Review". | Imagens: Divulgação
Hemingway: uma das entrevistas históricas da "Paris Review". (Foto: Imagens: Divulgação)
O autor de O Velho e o Mar, vencedor do Nobel em 1954, posa ao lado do amigo e também escritor John dos Passos |

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O autor de O Velho e o Mar, vencedor do Nobel em 1954, posa ao lado do amigo e também escritor John dos Passos

Além dos perfis amargos de F. Scott Fitzgerald e Gertrude Stein, Paris É uma Festa, as memórias dos primeiros dias de Ernest He­­ming­­way (1899-1961) na capital francesa, publicadas depois de sua morte, descreve uma traição matrimonial de cortar o coração.

O capítulo final, "Nunca Ha­­verá um Fim para Paris" ("There Is Never an End to Paris"), é um melancólico hino a Hadley Richardson, primeira esposa de Hemingway, a que o escritor abandonou pe­­la melhor amiga desta. A amante, Pauline Pfeiffer, a milionária que se tornou a segunda esposa de Hemingway, é apresentada como uma predadora ardilosa. Azar de Hemingway que caiu por ela.

Acontece que a história por trás da preparação do livro é quase tão saborosa quanto os contos dentro dele e corresponde a uma grande batalha que já dura gerações pela custódia sobre a épica, romântica e tempestuosa história do autor.

Mary, a quarta e última esposa de Hemingway, foi quem elaborou a primeira edição póstuma de Paris É uma Festa, pela editora Scribner em 1964 (a Bertrand Brasil detém os direitos em português), juntando as partes do manuscrito que o autor deixou inacabado. Ela criou um capítulo final que fala sobre a dissolução do primeiro casamento e do início do relacionamento com Pauline, construído a partir de passagens do livro que, pelas indicações dele, não deveriam ser incluídas.

No início do mês, a Scribner, agora um selo do grupo Simon & Schuster, está publicando nos Estados Unidos a nova versão de Paris É uma Festa (A Moveable Feast, em inglês), chamada de "edição restaurada", com organização de Seán Hemingway, um dos netos do escritor com Pauline. Entre as mudanças implementadas, está a transferência de parte do capítulo final do corpo do livro para um apêndice e a adição de passagens encontradas no manuscrito de Hemingway (excluídas em 1964), as quais, Seán acredita, pintam sua avó em cores mais favoráveis.

"Eu acho que essa edição deve corrigir os equívocos", diz Seán Hemingway, de 42 anos, que relata que Mary cortou não só o "remorso e um pouco da felicidade que Hemingway sentia", como também as "visões conflituosas em relação ao fim do casamento".

Especialistas acreditam que essa nova edição é tão definitiva quanto a versão anterior. "Esse livro não pode se tornar um texto sagrado", afirma Ann Douglas, pro­­fessora de Literatura na Uni­­versidade de Columbia, acrescentando que "não pode haver um texto final porque não existe um".

Realmente, especialistas e aficionados sabem há muito que Hemingway não considerava suas memórias de Paris completas à época de seu suicídio em 1961. Ele escreveu uma carta – enviada só depois de sua morte – para seu editor, Charles Scribner, dizendo que "a história não é para ser publicada do jeito que está e ela não tem um fim".

Num ensaio escrito para o New York Times Book Review em maio de 1964, Mary diz que Hemingway "pode ter considerado o livro acabado". Jun­­ta­­men­­te com Harry Brague, um editor da Scribner, ela adaptou o ma­­nuscrito, mudando a ordem de alguns capítulos e acrescentando outros que Hemingway tinha decidido não incluir. Mais notadamente, Mary inseriu aquele capítulo final sobre o fim do primeiro casamento.

Nos rascunhos para uma introdução que nunca terminou – publicada agora na nova edição –, Hemingway escreveu que que­­ria guardar o material " para o início de outro livro", que seria a crônica da "inacreditável felicidade" que ele viveu com Pauline.

Nova edição

Hemingway cometeu suicídio antes que pudesse escrever esse livro. Seán, curador associado do Metropolitan Museum of Art que já havia editado antologias dos escritos de Hemingway sobre guerra e caçadas, trabalhou com os manuscritos guardados na Biblioteca Presidencial John F. Kennedy e no Museu de Boston. A nova edição, que chega às livrarias norte-americanas na próxima terça-feira, é composta por 19 capítulos que Hemingway queria incluir, na ordem que ele os havia colocado. Os outros dez capítulos foram mudados para uma seção intitulada "Esboços Adicionais de Paris" ("Additional Paris Sketches").

Seán disse que revisou cortes que foram feitos na primeira edição e restituiu parágrafos que, segundo ele, apresentavam a relação de sua avó com Hemingway de uma forma mais matizada e verdadeira. Seán afirma que, ao fazer isso, sentiu que estava restaurando o texto, trazendo-o a uma forma mais próxima do que desejava seu avô.

A nova versão da entrada de Pauline na vida de Hemingway, agora intitulada "O Bagrinho e a Milionária" ("The Pilot Fish and the Rich"), incluída no apêndice dos "Esboços Adicionais de Paris", mostra Hemingway assumindo mais responsabilidade sobre o rompimento com Ha­­dley. Enquanto a edição de 1964 o re­­trata como vítima de Pauline, na de 2009 ele divide a culpa com ela.

"Para uma moça, enganar uma amiga é algo terrível, mas o fato de isso não ter me repelido foi minha responsabilidade e falta de visão", explica Hemingway na nova edição. "Por ter me envolvido e me apaixonado, assumi toda a culpa pelo ocorrido e vivi com remorso."

Patrick Hemingway, tio de Seán e um dos filhos de Pauline, o primeiro que sugeriu o projeto da nova edição, disse que estava curioso sobre o material a respeito de sua mãe. "Eu acho que a versão original era terrível em relação a ela", disse Patrick por telefone de sua casa em Bozeman, no estado de Montana. Ele ficou satisfeito de ver que a nova edição lembra aos leitores que seu pai era verdadeiramente feliz com Pauline. "Ele está mais humano e se autojustifica menos", explica Patrick.

Aos 81 anos, Patrick diz que não acusa Mary, morta em 1986, pela edição feita por ela. "Eu acho que Mary fez um trabalho excelente, dadas às circunstâncias", explica. Mas ele especula se Mary, que havia rompido com Pauline, não teria favorecido Hadley porque esta tinha concedido a Mary o direito a uma pintura de Miró que ela tanto queria. (Hemingway teve ainda uma outra esposa, a terceira, Martha Gellhorn).

Sandra Spanier, professora de Inglês da Universidade Penn State e editora geral dos próximos volumes das cartas de Hemingway pela Universidade de Cambridge, acredita que a nova edição apresentará um retrato mais fiel de Hemingway. "Ele tinha uma consciência tremendamente ativa e era muito honesto consigo mesmo", diz Spanier. "Não se autoenganava, como a edição de 1964 pode ter deixado transparecer."

Scribner está imprimindo 16 mil cópias da nova edição e usando a oportunidade para republicar todas os romances de He­­ming­­way com novas capas.

Os especialistas sobre He­­mingway lembram que o próprio autor frequentemente revisava as memórias a partir de cartas antigas e anotações. Jacqueline Tournier-Courbin, autora de A Moveable Feast – The Making of Myth ("Paris É uma Festa: a Criação do Mito"), explica que "Hemingway realmente reeditava o passado".

Alguns especialistas que festejam a oportunidade de conhecer o novo material expressaram ambivalência em relação à qualidade literária do livro.

"De um lado, se deseja saber tudo que ele pensou, quer ele tenha desejado publicar ou não", diz Douglas. "Mas, Deus do céu, a edição de 1964 já é um livro maravilhoso."

Tradução de Márcia Saliba.

Serviço

A Moveable Feast: The Restored Edition, de Ernest Hemingway. Scribner, 256 págs., US$ 25.

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