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Infinite jest

Livro impõe desafios, mas vai recompensar seus esforços para se tornar, segundo diz o escritor Daniel Galera no texto desta página, “um mundo que habitamos para sempre”

 | Osvalter Urbinati
(Foto: Osvalter Urbinati)

De todas as maneiras possíveis de começar a falar a respeito de Graça Infinita, a obra-prima de David Foster Wallace, a melhor de todas talvez seja também a mais subaproveitada: a história.

A mitologia em torno do romance já celebrizou sua extensão de mais de 1,1 mil páginas, a linguagem intimidante e apaixonante em igual medida, as notas de fim numerosas e extensas, o quebra-cabeças cronológico, a complexidade estrutural e a bizarrice de boa parte de suas várias personagens.

Na chegada dessa tradução brasileira, a pergunta que soa mais inocente é, para muitos novos leitores interessados, a mais relevante: sobre o que é o livro? Vamos lá.Situada em um futuro próximo em que Estados Unidos, México e Canadá formaram a ONAN (acrônimo para Organização das Nações da América do Norte) e em que até os anos do calendário já não escapam do patrocínio publicitário, a trama se divide em dois núcleos principais. Um deles é a família Incandenza.

O jovem tenista Hal Incandenza, estudante e atleta superdotado que se deixa tragar aos poucos pela alienação social e pelo uso de drogas, é o mais próximo de uma figura central e autobiográfica do romance. Orin, o irmão mais velho, é um ídolo do futebol americano e um obcecado sedutor de mulheres maduras. Mario, irmão do meio, é difícil de descrever: padece de múltiplas deformidades físicas e algumas mentais, e é também o espírito mais sereno e otimista que habita essas páginas.

Avril, ou "Mães", como os filhos a chamam, é a chefe de família dominadora e promíscua (para usar uma expressão datada que reflete as tintas algo moralizantes com que Avril é retratada) que, após o suicídio do marido, assume o comando da Academia de Tênis Enfield, a mesma em que Hal estuda. Completa esse clã um patriarca alcoólatra, James O. Incandenza, cineasta experimental cuja detalhada filmografia rende uma das notas mais deliciosas do livro – leia e releia com atenção, pois ela também vem cheia de pistas e enigmas relacionados à trama.

É uma família disfuncional ao extremo: complexos freudianos, jogos intelectuais opressores, insinuações de incesto - eu não saberia nem por onde começar. Há também ternura, fraternidade, admiração. Os dramas da família Incandenza alçam voos hiperbólicos, mas jamais desenraizam do solo humano.

Outro núcleo está centrado no grandalhão Don Gately, ex-ladrão e ex-viciado, membro dos Alcoólicos Anônimos e ajudante na Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool (sic). Gately porta a visão do livro sobre as irmandades de recuperação para dependentes (Wallace era fascinado pela eficiência quase mística das platitudes existenciais e dos rituais simplórios no combate aos vícios) e se relaciona com quase todas as subtramas do romance, às vezes de forma obscura. A seu redor gravitam vários internos da Casa Ennet, uma turma de coadjuvantes excêntricos que ajuda a inflar o livro de cenas dementes e hilárias.

Gately se apaixona por Joelle van Dyne, também conhecida como Madame Psicose, ex-namorada de Orin e protagonista de alguns filmes de James Incandenza. Um dos meus exemplos favoritos da genialidade de David Foster Wallace é a maneira como ele consegue manter insolúvel o mistério a respeito de Joelle: seu rosto, sempre escondido por um véu após um acidente com ácido, é descrito ora como horripilante, ora como insuportavelmente belo.

Joelle é a protagonista de um filme inacabado de James Incandenza, o famigerado Graça Infinita. Seu poder de entretenimento o transforma em uma arma cultural de massa: espectadores ficam vidrados na tela até a morte. O cartucho com o filme cai em mãos dos Cadeirantes Assassinos do Quebéc, terroristas separatistas que pretendem disseminá-lo para varrer os americanos do mapa.

Eis um resumo possível dos principais elementos da história. O romance é muito mais que isso, mas as temáticas que o movem já se deixam entrever: vício, entretenimento, a solidão e o narcisismo da vida pós-moderna.

O ponto de vista de Wallace era o da cultura norte-americana, e isso precisa ser levado em conta para compreender e apreciar as idiossincrasias da obra, mas a pergunta básica ressoa forte em qualquer sociedade ocidental e, cada vez mais, no planeta globalizado: por que tanto entretenimento?

A suspeita de Wallace, como ele próprio disse em uma entrevista, é que se trata de um "impulso religioso distorcido". A devoção moderna ao entretenimento, somada ao individualismo e à predominância de uma visão de mundo irônica que fatalmente recai em cinismo, explicaria o vazio espiritual que assola do mais destituído ao mais privilegiado.

A honestidade, um dos bálsamos possíveis, já não pode medir forças com a ironia nas relações humanas.

Não por acaso, o único personagem do livro que não consegue evitar ser honesto sempre, Mario Incandenza, é uma deformidade ambulante.

Outras leituras de Graça Infinita não apenas são possíveis como podem conviver saudavelmente com a do parágrafo anterior.

A prolixidade, vocabulário enciclopédico e estrutura propositalmente desnorteante não pretendem esgotar temas, mas criar um ambiente ficcional em que eles se convertam em um poderoso sentimento de fundo, algo que o leitor carregue para sempre consigo.

Nisso, o romance triunfa. Por mais que sua extensão e nível de exigência sejam desafios, ele nos recompensa de novo e de novo por nossos esforços, de maneira intensa e regular, e se torna um mundo que habitamos para sempre.

A tradução

Graça infinita

Caetano Waldrigues Galindo, tradutor e professor da Universidade Federal do Paraná

Graça Infinita tem mais de 610 mil palavras na tradução feita por Caetano Waldrigues Galindo. Se você consegue ler em média 200 palavras por minuto, demoraria 50 horas para atravessar o livro inteiro.

Galindo leu o livro de David Foster Wallace duas vezes de cabo a rabo antes de fazer a tradução (quando o leu pela terceira vez).

Entre a primeira e a terceira vez, leu tudo que Wallace escreveu. Tudo. E mais o que escreveram sobre ele (incluindo a biografia de D. T. Max, que tem um título lindo: Every Love Story Is a Ghost Story, "toda história de amor é uma história de fantasmas").

Na entrevista a seguir, concedida ao jornalista Irinêo Baptista Netto, o tradutor de Graça Infinita – premiado pelo trabalho de colocar em português a obra-prima de James Joyce, Ulysses – fala sobre o que ele aprendeu lendo Wallace.

David Carr, do New York Times, disse em entrevista que o único escritor vivo ou morto que gostaria de encontrar é David Foster Wallace. E Carr disse também que adora Graça Infinita e que leu o livro todo pulando as notas de rodapé. O que o leitor perde se evitar as notas de rodapé – como o livro ficaria sem elas? E por que Wallace gostava de usá-las como recurso literário?

Perde-se muita coisa. Algumas notas são meros detalhes. Notas mesmo, esclarecimentos, mas há trechos inteiros em nota. Reza a lenda que muita coisa foi cortada da versão final do livro, na comparação com o manuscrito. E que as últimas que quis salvar, ele acabou passando para notas em fonte menor etc. A filmografia do Incandenza, por exemplo, que é uma nota enorme e aparentemente tediosa, é importantíssima para o livro. E tem histórias, "causos", coisas divertidíssimas nas notas. Sobre o porquê: fora essa coisa pragmática, acho mesmo que ele simplesmente (como todas as grandes ideias) quis usar um recurso do meio livro que a literatura não estava empregando... e usou magistralmente.

Críticos respeitados falaram que o livro teria se beneficiado imensamente de um editor mais criterioso, capaz de reduzir as mais de mil páginas para umas 600. O que acha disso?

Acho bobagem. O livro podia ser maior. Ele não tem uma estrutura que pudesse se beneficiar de cortes. Ele é como uma colônia, um recife de coral. Ele cresce para todos os lados, sem direção, mas gerando um todo organizado de uma maneira estranha. Um fractal, um triângulo de Sierpinski, como ele mesmo disse. E, o.k., crescimento de um fractal, afinal, é ordenado mas não é teleológico, não tem fim à vista. E faz parte do tema do livro, a ideia de uma coisa grande, absorvente. O livro precisa ser grande.

Você foi do Ulysses, de James Joyce, para o Graça Infinita. E esse trânsito não foi por acaso. Poderia falar um pouco sobre isso?

Wallace, num certo sentido, foi a minha salvação do joyceanismo estreito e radical. Foi a prova de que se fazia e se faz ficção interessante, nova, fresca, poderosa mesmo. E pontos comuns, eles têm, mas muito menos na forma, na estrutura, do que no conteúdo humano dos livros. Do amor que os dois tinham pelo tema, pelas pessoas. Joyce, acho, era um "sim" muito mais radical. Wallace era mais angustiado. Mas os dois eram pautados pela atenção, pela compaixão, pela compreensão.

O escritor Daniel Galera, no prefácio de Ficando Longe do Fato de Estar Meio Que Longe de Tudo, diz que o Wallace dos textos de não ficção é "mais fácil" que o Wallace dos textos ficcionais. Você concorda com essa afirmação?

Concordo, sim. E nem é uma questão formal. A questão é que ele era um cara inquieto. Incomodado. Ele queria entender a gente, ele mesmo, o mundo. E quando ele fazia isso em não ficção, ora, ele te guiava pelo argumento, contra-argumentava, expunha, raciocinava. Quando ele faz isso em ficção (e eu acho que a prosa literária e a prosa ensaística dele são versões de um mesmo projeto de entender o mundo), ele faz na linguagem da alegoria, da ilustração. Por espelhos e em enigmas, como diria o Paulo de Tarso. E esse caminho, por mais que possa ser (e seja, na minha modesta opinião) mais poderoso e mais fértil, gera mais dificuldade, conta com mais trabalho do leitor.

O que você entendeu/descobriu/aprendeu lendo David Foster Wallace?

Sobre mim. Sobre os outros. Sobre o mundo. Sobre o potencial da literatura como campo de reflexão. Sobre compaixão, fundamentalmente. Sobre vícios, sobre empatia, sobre a dificuldade de ser, e de tentar ser, e de ser tentando ser espontaneamente, de fazer força para ser natural, de fazer força para ser sincero, e ter consciência desse processo: de saber que se sabe que se tenta não tentar saber... Esse tipo de coisa.

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