
William Shakespeare. Will, para os íntimos. Intimidade que continua sendo conquistada por um seleto grupo mesmo depois de quase 400 anos da morte do maior escritor e dramaturgo do idioma inglês. Quem há de negar essa proximidade, essa via que conecta os tradutores sim, eles mesmos a um dos três autores mais traduzidos no mundo? Profissionais com um quê de obstinação, esforçam-se para impregnar sua língua mãe, no caso das traduções de Shakespeare, com os personagens ora sombrios, ora cômicos, que tentam ser dissecados nas camadas não só de linhas e páginas, mas de entrelinhas e subentendidos. Como traduzi-los sem escancará-los? Essa é a questão que ronda a existência dos tradutores. Uma delas.
Outra, e que atinge não só os tradutores, é se Shakespeare foi ou não o escritor das obras atribuídas a ele, polêmica levantada no livro Quem Escreveu Shakespeare?, de Stephen Greenblatt, traduzido por Liliana Negrello e Christian Schwartz. "No original, o título é Contested Will o segundo termo pode ser lido tanto com o significado de legado ou herança quanto como uma alusão ao apelido Will. Não há como manter esse trocadilho na tradução", conforma-se Liliana, uma das tantas tradutoras ao redor do globo que mergulhou nos meandros de uma das peças, sonetos ou poemas de Shakespeare.
Escolher a obra a ser traduzida é um privilégio. O mais comum é as editoras indicarem o título. Na análise de Christian, que tem três traduções encomendadas para 2014, "as obras são compradas pelas editoras de acordo com critérios comerciais e editoriais. Só em situações muito especiais, particularmente no caso de traduções feitas a partir de projetos acadêmicos pouco ou nada comerciais, por exemplo, é que a iniciativa acaba sendo do tradutor. Dos mais de 20 livros em que trabalhei, dois foram indicados por mim: Caro Morrissey [de Willy Russell] e Quem Escreveu Shakespeare?. Mas isso é exceção". Tradutor de prosa, resolveu arriscar passar para o português as letras do cantor Lou Reed (1942-2013). "Não acho que isso vá se repetir, simplesmente porque um livro com as letras completas de um cantor não é algo que se publica muito", afirma Christian, que traduziu as músicas em parceria com Caetano Galindo, o tradutor paranaense conhecido por encarar o desafio de mergulhar no calhamaço caótico do fluxo de consciência de Ulysses de James Joyce.
Se as situações de dilema na hora de escolher a palavra mais adequada normalmente são companheiras assíduas do tradutor, a que grau a incerteza se potencializa num texto como o que Caetano traduziu, construído para perseguir os pensamentos, a livre desordem que mistura presente e passado, realidade e anseios? O caminho para lidar com as dúvidas e saber-se confiante de ter escolhido a melhor talvez esteja na aceitação de que os olhos do leitor podem vagar de uma página para outra como fantasmas de insatisfação. "Uma tradução, como a execução de uma sonata de Beethoven, sempre vai ser frustrante para alguns. E, além disso, traduções envelhecem muito mais rápido que os originais. Boas traduções antigas às vezes não se sustentam hoje. Mas não me lembro de algum caso exemplar. Na verdade, se tem uma coisa que esse trabalho te ensina é a ser humilde e não sair apontando dedos e vendo defeitos. Todo mundo faz caca", reflete Caetano.
Aproximação
Na tentativa de facilitar a vida de quem lê, muita obra por aí acaba emporcalhada. No século 20, Walter Benjamim, filósofo alemão, dizia ser necessário trazer o leitor para o texto, prática comum do romantismo no século 19, que era rebatida por Friedrich Schleiermacher, também expoente do pensamento alemão. O quanto aproximar o leitor, afasta o tradutor do original é tema recorrente nas rodas de conversa sobre o assunto. E a frase "O tradutor é um traidor" sempre aparece como representativa da sina de quem escolhe o caminho.
"Cada tradutor recria aquilo que julga pertinente num determinado texto, e talvez o mais interessante de tudo seja ver como acontece essa recriação, mas isso é claro acaba por exigir um conhecimento da língua original. Talvez o ideal fosse apenas advertir o leitor (todo leitor) de que a tradução nunca é idêntica ao original; o que não é uma falha, mas um estado constituinte da tradução", analisa Guilherme Gontijo. Para quem traduz poesia, então, melhor nem discutir o aval para traição.
"Falar sobre traição é coisa de leigo. Ler Proust na tradução de Mário Quintana e os poetas provençais pela mão de Augusto de Campos, por exemplo, é uma experiência literária integral. A noção estrita de fidelidade não se aplica à literatura e à poesia. Um verso não é um teorema. O trocadilho italiano traduttori-traditori continuará valendo para as más traduções, que ainda são frequentes", alfineta Josely Vianna.
Um dos fatores que pode colaborar para isso é falta de profissionalização. São poucos os que conseguem sobreviver apenas da tradução.
A remuneração varia muito, mas em geral o valor fica entre R$ 28 e R$ 40 por lauda de 2,1 mil caracteres com espaços. Se houver poucos tradutores de uma língua ou se a editora tiver pressa, o ganho pode aumentar. Algumas editoras já trabalham com um modelo de adiantamento acrescido do pagamento de porcentagem do preço de capa. "A primeira e última vez que me ofereceram uma tradução (de um poeta americano) recusei, porque queriam pagar uma miséria. O trabalho de tradução-arte é pouquíssimo valorizado no Brasil. Consome tempo, energia, pesquisa, concentração, além do trabalho de recriação", reclama Rodrigo Garcia Lopes. Em termos de políticas públicas, segundo ele, as iniciativas para divulgar a literatura brasileira no exterior são muito tímidas. "Ainda é muito pouco, por exemplo, o que o Ministério da Cultura oferece para tradutores que querem verter obras brasileiras para outras línguas, cerca de R$ 15 mil por livro. Precisa melhorar", completa. Dos dez tradutores da cena paranaense entrevistados para o Caderno G Ideias apenas dois sobrevivem da tradução.
O fato é que a língua portuguesa sempre ocupou um lugar periférico na produção de conhecimento no Ocidente. Desde o século 16, quando o latim deixou de predominar, a produção de ponta e a imensa maioria do corpo bibliográfico passou a se desenvolver, sobretudo, em inglês, francês e alemão. No século 20, principalmente no pós-guerra, com a expansão do domínio americano, o mundo editorial voltou-se para o que acontece nos Estados Unidos. "O Brasil sempre foi um país dependente das traduções. No mercado editorial americano as traduções de livros em português comparecem mais como enfeites, elementos de novidade e de diversificação politicamente correta, do que qualquer outra coisa", comenta a tradutora Denise Bottmann. Diante disso, considera-se até natural que a atenção esteja voltada para lá. No entanto, desviar os olhos para outras lugares pode significar inebriar-se, por exemplo, com a poesia polonesa do século 19 e 20 que ainda é pouco traduzida no Brasil (a prosa tem começado a ser publicada nos últimos anos).
Cobrança
Embriagar-se com a obra é condição sine qua non para a boa tradução, dizem críticos literários de obras traduzidas, profissão, aliás que não tem formação específica no Brasil. O tradutor é quem, algumas vezes, faz o papel de crítico. Mas, o que, afinal, eles esperam e cobram do tradutor? "A tradução costuma ser uma vítima de nosso próprio senso comum. Por alguma razão, costumamos querer que a tradução uma prática discursiva que se dá nas mesmas condições de possibilidade e nos mesmos limites de qualquer outra prática humana realize idealmente aquilo que nenhuma prática discursiva é capaz de fazer, a saber: ser o resultado do esforço intelectual, técnico e criativo de um sujeito que, no entanto, teria de se eximir de sua condição de sujeito para, idealmente, não deixar qualquer marca no processo de elaboração no discurso que constitui a tradução", resume Maurício Cardozo. O poeta e teórico francês Charles Baudelaire tem estudos no campo da crítica que servem até hoje de base para teses. Além dos versos que fundaram a tradição moderna em poesia e das incansáveis traduções e análises da obra de Edgar Allan Poe, que "definiram a leitura de Poe na Europa e, de certa forma, mesmo nos Estados Unidos", lembra Sandra Stroparo.
E não foi Baudelaire quem sugeriu embriagar-se de vinho, poesia ou virtude?
Porém, num conto que se passa dentro de uma penitenciária de alta segurança no interior da Indiana, nos EUA, os presos usam outros artifícios menos nobres para suportar a realidade. O tradutor Roberto Muggiati perdeu-se no dicionário de gírias para descobrir o significado do título do conto "In the Ozone", uma expressão que corresponde a drogado, chapado.
Mas, os textos mais difíceis que Muggiati traduziu foram contos policiais contemporâneos das antologias anuais das melhores mystery stories. "A competição é tão acirrada e os jovens autores se esmeram tanto em inovações de linguagem que você tem de suar para fazer jus ao preço de cada lauda", pontua Muggiati.
Quando traduziu o linguajar de lenhadores broncos das montanhas canadenses, no Vale do Neslolo, adivinha? Como bom tradutor, que precisa estar inteirado da obra, a primeira providência foi entrar no Google para saber a localização do Vale. Não achou. Concluiu que é um nome inventado. Há 50 anos no ofício de tradutor já deve estar acostumado a se perder nas profundezas da reinvenção...





