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Tradução

Inventário do indizível

Em quase a mesma coisa, Umberto Eco investiga as opções de releitura em outra língua

Traduzir é dizer a mesma coisa em outra língua, lembra Umberto Eco logo no primeiro parágrafo de Quase a Mesma Coisa – Experiências de Tradução, que acaba de ser lançado no Brasil, pela editora Record. Só que a aparente simplicidade da sentença não passa de uma armadilha, ou melhor, de duas. A primeira se refere ao "dizer": seria explicar ou remeter? Talvez reformular? A segunda é a própria idéia de "coisa" a ser traduzida: sabe-se do que se trata, afinal, essa "coisa"?

Partindo dessas duas perguntas, Eco se debruça sobre a complexa tarefa do tradutor e elabora a premissa que vai guiar seu raciocínio ao longo do livro. Traduzir seria "tentar compreender como, mesmo sabendo que nunca se diz a mesma coisa, se pode dizer ‘quase’ a mesma coisa".

Em um dos ensaios do Pequeno Manual de Procedimentos, o escritor argentino César Aira (por sinal, amigo e tradutor em espanhol do brasileiro Sérgio Sant’Anna) se detêm sobre a primeira frase do clássico Moby Dick, de Herman Melville: "Call me Ishmael".

"Esse começo é um eterno problema para os tradutores. Há quem diga que essa frase sozinha dá mais trabalho que todo o resto, o que não é pouco", sugere Aira. O motivo: espécie de "era uma vez" do romance moderno, a frase pode ser interpretada como uma maneira que o narrador escolheu de esconder a sua verdadeira identidade. Talvez.

Mas, também pode ser um recurso estilístico que permite ao narrador contar a história em primeira pessoa. Algo próximo a se o narrador de Em Busca do Tempo Perdido começasse a saga com "Podem me chamar Marcel". E não está descartada a possibilidade do narrador querer simplesmente suprimir a formalidade da frase, dizendo algo como "podes usar o tu" ou "pode me chamar de você", pois o inglês não possui níveis distintos para familiaridade e respeito.

Voltando a Eco e à idéia do traduzir como "dizer quase a mesma coisa": "Quanto deve ser elástico esse ‘quase’? Depende do ponto de vista: a Terra é quase como Marte, na medida em que ambos giram em torno do Sol e têm a forma esférica, mas pode ser quase como qualquer outro planeta girando em outro sistema solar, e é quase como o Sol, pois ambos são corpos celestes, é quase como a bola de cristal de um adivinho, ou quase como uma bola, ou quase como uma laranja", provoca.

Traduzir passa a ser uma forma de negociar soluções com o próprio texto, não necessariamente com o autor. A fidelidade esperada pelo tradutor se refere ao texto, não à intenção do autor – "aquilo que o texto diz ou sugere em relação à língua em que é expresso e ao contexto cultural em que nasceu".

Eco aponta ainda que as inúmeras possibilidades semânticas oferecidas por um texto permitem ao tradutor até mesmo "melhorar" a forma de dizê-lo. "Melhorar", nesse caso, seria descobrir intenções "que o próprio texto manifestava de improviso, independente da minha atenção originária de autor empírico".

Traduzido em inúmeros idiomas e tradutor ao italiano de dois livros, Exercices de Style, de Quenau, e Sylvie, de Gérard de Nerval, Umberto Eco usa exemplos de sua própria experiência para ilustrar questões como "Reversibilidade e Efeito", "Significado, Interpretação, Negociação" e "Perdas e Compensações". O livro, por si só, não deixa de ser quase auto-referente: escrito em italiano, traduzido ao português e citando exemplos de traduções do inglês e francês. É por esse terreno árduo que o semiólogo, professor e escritor italiano se movimenta e tenta dizer "quase a mesma coisa".

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Serviço: Quase A Mesma Coisa – Experiências de Tradução, de Umberto Eco (tradução de Eliana Aguiar. Record, 462 págs., R$ 50).

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