Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
artigo

Jango pelos olhos de um historiador

Posse de Jango no Ministério do Trabalho, em junho de 1953: biografia revela retrato mais próximo da vida real | Arquivo João Goulart/CPDOC-FGV
Posse de Jango no Ministério do Trabalho, em junho de 1953: biografia revela retrato mais próximo da vida real (Foto: Arquivo João Goulart/CPDOC-FGV)

A biografia de João Goulart escrita por Jorge Ferreira é resultado de cerca de dez anos de pesquisas, e foi finalizada como tese de livre-docência no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, onde é professor. Ferreira é um dos historiadores mais ativos no Brasil, com diversos livros publicados ou organizados sobre o movimento comunista no Brasil, o período democrático 1946–1964, o trabalhismo e o conceito de populismo.

O trabalho de Ferreira foi meticuloso. Tomou depoimentos de familiares de Jango, consultou outros recolhidos pelo CPDOC/FGV, bem como arquivos oficiais de Jango e de Vargas e as correspondências – tudo no acervo da instituição. Além disso, fez uma ampla consulta e discussão bibliográfica de livros de memórias publicados em torno do tema.

O que resultou foi um livro capaz de dar força a uma reavaliação histórica, com uma correspondente guinada no trabalho dos historiadores a respeito da história recente do Brasil. Os historiadores vinham perdendo protagonismo na discussão da história política recente, entre outros motivos, porque o próprio Regime Militar interditou a reflexão acadêmica – com cassações de professores e sucateamento da pesquisa em Ciências Humanas nas universidades. Além disso, os historiadores enfrentam uma dificuldade crônica de seu ofício: como traduzir anos de pesquisa em arquivos e fontes históricas num texto compreensível ao grande público? Quem vinha fazendo esse meio-de-campo eram jornalistas bem intencionados e com incrível capacidade de trabalho. Mas sem as condições ideais de abordar as fontes históricas com a necessária desconfiança, que os historiadores aprenderam a duras penas.

Jorge Ferreira resolve bem o problema. Seu texto é empolgante. Conduz o leitor pela história pessoal de Jango ao mesmo tempo que discute grandes temas da política do período 1945–1975 – e faz tudo isso sem entediar. O leitor sente como se estivesse diante de um romance de Érico Veríssimo. Uma das qualidades do texto de Ferreira é o cuidado que ele toma em não adiantar a visão histórica: nos faz caminhar por cada um dos impasses dos personagem como se o futuro não estivesse traçado. É claro que não estava: era uma coisa aberta na medida em que os eventos se desenrolavam. Mas mesmo sabendo muito bem disso, poucos são os historiadores que resistem à tentação de "prever o passado", como se ele já estivesse determinado antes mesmo de acontecer.

A biografia escrita por Ferreira resgata João Goulart do limbo histórico a que ele foi injustamente remetido. E o autor explicita: nossa visão de Jango foi nublada pela visão da extrema-direita vitoriosa em 1964 e, em igual medida, pela esquerda revolucionária.

Para um lado Jango era despreparado, corrupto, beberrão, mulherengo, comunista, agitador; para outro era conciliador, vacilante, pequeno-burguês, fraco (qualquer semelhança com o tratamento dispensado a Lula não é mera coincidência). Da refutação bem documentada de todas essas interpretações surge um Jango mais próximo da vida real: um homem contraditório, liderança política central em um dos momentos mais conturbados de nossa história política – por isso mesmo tão difícil de compreender.

Trajetória

Estancieiro que enriqueceu engordando gado nas terras da família entre 1940–1945, João Goulart entrou para a política pelas mãos de Getúlio Vargas durante seu exílio em São Borja após o fim do Estado Novo. Tornou-se uma liderança do PTB e importante articulador da candidatura de Getúlio em 1950. Como Ministro do Trabalho abriu uma nova fase na história política, transformando os trabalhadores em atores políticos, que eram recebidos de portas abertas no Ministério. Pela sua grande habilidade de negociação e trânsito entre as lideranças sindicais (ou pela mão-de-ferro com que disciplinou o partido e os sindicatos) foi de importância capital para a estabilidade política do governo de Juscelino Kubitschek. Tanto na eleição de JK como na de Jânio, teve muito mais votos como vice do que os candidatos majoritários – numa época em que as duas votações eram separadas.

Assumiu a presidência na pior crise do período democrático, causada pela renúncia de Jânio e pelo golpismo de Carlos Lacerda e da UDN. Teve dificuldade em manter funcionando a aliança PSD–PTB, esteio da curta experiência democrática no período 1946–1964. E foi vítima do colapso desta coligação à medida que o radicalismo da esquerda petebista (personificado por Leonel Brizola) implodiu a coligação com as "velhas raposas" do PSD e, especialmente, com sua "ala moça" – bem representada em Tancredo Neves.

Quando ninguém mais queria a democracia, ela acabou. À direita o golpismo que tentava bloquear as chamadas "reformas de base". À esquerda o golpismo que pretendia implantá-las à força, dispensando a negociação com um Congresso que julgavam dominados por latifundiários. Prensado entre as correntes radicais, Jango não se equilibrou.

São interessantes as avaliações que o historiador faz das causas do Golpe de 64, discutindo as interpretações históricas da bibliografia existente. Também rediscute os motivos porque Jango não acionou os meios de que dispunha para resistir no governo. As conclusões de Ferreira deixo para o leitor procurar no livro. A minha conclusão é que se não formos capazes de acertar as contas com nossa memória, e superar as visões hegemônicas construídas tanto pela direita golpista como pela esquerda revolucionária, não seremos capazes de uma correta avaliação de nosso passado, nem de saudáveis projetos para nosso futuro político.

O autor é Doutor em História Social pela USP, e professor da Faculdade de Artes do Paraná.

Serviço

João Goulart – Uma Biografia. Ed. Civilização Brasileira. 714 págs., R$ 56.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.