Orinoco é uma peça escrita no início dos anos 80, quando as dívidas avassaladoras dos países latinos ampliavam a oposição contra países ricos. A situação econômica mudou um pouco, mas as metáforas propostas pelo texto do mexicano Emilio Carballido (19252008) continuam conferindo um leque de possibilidades de leitura e seduzindo até companhias nada panfletárias, como a curitibana A Armadilha, que define seu estilo como um nonsense contemporâneo.
Em sua terceira estreia no Teatro Novelas Curitibanas, depois de Jornal da Guerra contra os Taedos (2009) e Os Invisíveis (2010), a companhia liderada por Diego Fortes lança Orinoco na próxima quinta-feira, com Maureen Miranda e Raquel Rizzo no elenco. O diretor, de 28 anos, conversou com a Gazeta do Povo por telefone:
Sobre o que fala Orinoco?
É uma peça atípica para nós, porque é fruto de uma dramaturgia com a qual não estávamos habituados, já que trabalhamos com narrativas um pouco mais nonsense, com textos e cenas fragmentados, que podem se correlacionar ou não. Raramente trabalhamos com a esfera de personagem e às vezes até sem trama definida. Mas adorei ter dirigido a leitura dramática de Orinoco, em 2007. O texto trabalha o drama aristotélico em sua forma mais pura, porque é um conflito que se passa em apenas um dia e tudo acontece no mesmo lugar. Na história, duas vedetes de variedades são contratadas para dar shows em um campo petroleiro na beira do Rio Orinoco, que deságua na Venezuela.
Como são essas artistas?
As rubricas dizem que elas não são maravilhosas, mas também não chegam a ser sofríveis. Conseguem viver daquilo, mas com alguma dificuldade. Uma delas é um pouco mais nova, a Fifi, vivida pela Maureen Miranda. Ela tem uns 30 e poucos, mas parece que tem menos. Já a Mina tem 40 e poucos, e às vezes parece ter mais. Na leitura dramática, ela foi feita pela Rosana Stavis, que por motivos de agenda não pôde entrar para o elenco da peça e foi substituída pela Raquel Rizzo. As duas personagens vivem uma dicotomia grande, porque Fifi é vivida e esperançosa, até iludida, com uma visão otimista da vida. E a Mina não chega a ser pessimista, mas tem os pés no chão, sabe que as portas se fecham. Elas são amigas há muito tempo, uma verdadeira dupla, e se complementam.
Qual o conflito?
O conflito surge quando elas acordam e descobrem que não tem mais ninguém no barco. Está tudo vazio, e elas começam sua própria investigação sobre o ocorrido. Nisso há mil metáforas possíveis, é uma obra aberta. Pesquisei tudo sobre a peça e percebi que a maioria dos críticos se ateve à relação psicológica entre elas, como conflito humano. Mas as metáforas não param por aí. Há a questão do lugar do artista no mundo e como ele se vê que é a que mais me interessa como diretor. A busca por dignidade. Porque as vedetes da peça se esforçam muito, mas as pessoas insistem em tratá-las como prostitutas.
Que outra metáfora você vê no texto?
O barco à deriva permite pensar nos países latinos como lugares que não têm muita esperança. As vedetes assinaram um contrato de três meses de trabalho na base petroleira, mas sabem que lá tudo custa caro e elas acabarão se endividando. Voltei a ler As Veias Abertas da América Latina [de Eduardo Galeano], que fala da exploração de países por outros e da vocação de uns para ganhar e de outros para perder. Além disso, elas estão sendo transportadas em um navio de carga o que diz bastante coisa sobre o artista tratado como mercadoria. É uma peça extremamente política sem falar de política. Não é chata, panfletária, nem didática. Fora isso, é um texto super convencional e nós somos uma companhia de teatro contemporâneo. Me questionei sobre por que queria tanto fazer essa peça...
De que forma você tornou a montagem contemporânea?
É uma comédia, então a chance de virar uma galhofa, uma comédia menor, era muito grande. Então, um dos elementos que usamos foi a música. Há quatro canções no texto que optamos por manter no espanhol e que Josemar Artigas musicou com ritmos latinos, como bolero e tango. Os outros músicos são Carlos Miranda, pai da Maureen, e Val Ofilio, que fazem também uma trilha incidental. Eles estão em cena como se não estivessem, mas há um momento em que contracenam com as atrizes, eliminando a ilusão do teatro realista. Analisei várias outras montagens desse texto, do México, da Espanha, até de Dallas, onde ele foi montado como se fosse cinema, com playback para as canções e um barco realista. Já o nosso cenário é uma abstração de barco. E, na interpretação das atrizes, há energia, mas sem criar uma voz diferente, um corpo falso. Elas são basicamente elas. E o público é levado em conta...
O metateatro sempre aparece no seu trabalho, não?
Exatamente, e estou adorando, ainda mais não estando em cena.
Como é ser um ator na direção?
Quando estou dirigindo e atuando, tenho uma fantasia de que vou poder ajudar se algo der errado, o que é uma ilusão: você fica tão refém quanto os outros.
O que já deu errado?
Em Os Invisíveis, eu estava em cena quando um prato que devia quebrar não quebrou. E não pude fazer nada.
Qual foi seu maior sucesso até hoje?
É relativo. Nossa maior conquista em termos de linguagem, em que conseguimos definir rumos estéticos e agradar o público ao mesmo tempo, foi Café Andaluz.
Como você define essa linha?
Uma interpretação técnica, não psicanalítica. O texto é pensado, "partiturado", com um gráfico de emoções combinado: a tensão aumenta e diminui; o ator não está emocionado, apenas sensibilizado. É muito científico: a gente planeja o estado aonde o ator vai chegar. Nada é espontâneo. Já em Os Leões, em 2007, foi o contrário. A plateia era pífia, o trabalho, difícil de vender, não acontece nada na trama, mas a peça nos projetou nacionalmente. A direção era de Nadja Naira. A crítica falou bem e isso rendeu convites. Mas o princípio da linguagem já estava em Café Andaluz.
Você tem a intenção de deixar Curitiba?
Hoje em dia esse não é mais o caso. Curitiba é um excelente lugar para produzir as coisas, tem ótimos atores, dramaturgia riquíssima, pares qualificados. Não é mais a roça que se achava que era. É um ponto de referência, e ótima para morar. O que é muito importante é levar os trabalhos para fora. Estamos concorrendo a uma série de editais com todas as nossas peças. Queremos apresentar Os Leões no Rio de Janeiro e reaproximar o Alexandre Nero da companhia [o músico e ator atua na peça]. E achamos que Café Andaluz cairá muito bem em São Paulo.
Serviço:
Orinoco. Teatro Novelas Curitibanas (R. Carlos Cavalcanti, 1.222 São Francisco), (41) 3321-3358. De quinta-feira a domingo, às 20 horas. Entrada franca. Até 28 de agosto.



