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Dos livros infantis publicados entre 1994 e 2014, uma média de 10 por cento exibiam conteúdo multicultural | Giselle Potter/NYT
Dos livros infantis publicados entre 1994 e 2014, uma média de 10 por cento exibiam conteúdo multicultural| Foto: Giselle Potter/NYT

Quando estava consertando a estante de livros da minha filha de quatro anos, notei que faltava uma coisa nas capas coloridas dos seus livrinhos: meninas que não fossem brancas. Havia carros falantes, criaturas imaginárias e histórias sobre homens, mulheres e crianças brancas. Comecei a contar e descobri que apenas 4 por cento dos livros exibiam minorias como personagens principais, e apenas um deles tinha uma menina negra como a minha filha.

Eu precisava fazer mais que consertar a estante; tinha que remediar o conteúdo dos livros também.

Não é que minha filha nunca tivesse ouvido histórias com personagens que se parecessem com ela. Sou professora de educação infantil e muitas vezes pego livros com personagens diversos das bibliotecas da escola e da cidade. Mas quando notei o desequilíbrio na nossa coleção particular, percebi que nossos livros deveriam ser um reflexo dela também. A falta de representação deveria ter ficado óbvia muito antes, mas compreendi que como mãe branca, meu privilégio fez com que a composição racial dos nossos livros passasse despercebida por mim. Uma parte importante da adoção inter-racial é aprender ao que prestar atenção. Assim que percebi o que estava faltando, me comprometi a encher as estantes de histórias sobre mulheres negras fortes, talentosas e inteligentes.

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Em meados dos anos 1960, a editora de livros infantis Nancy Larrick descobriu que as editoras que publicavam a maioria dos livros com personagens negros exibiam esses personagens em menos de 5 por cento das publicações da época (e não necessariamente como personagens principais, ou mesmo positivos). Larrick foi uma das primeiras pessoas do setor do livro infantil a dizer que não era correto que as crianças negras aprendessem sobre o mundo com a ajuda de livros que não as representavam.

Janelas e espelhos

Esse problema persiste. Dos livros infantis publicados entre 1994 e 2014, uma média de 10 por cento exibiam conteúdo multicultural, ainda que esse número esteja crescendo: em 2014 o total chegou a 14 por cento. A campanha We Need Diverse Books (Precisamos de diversidade nos livros) foi criada em 2014 para defender a representatividade na literatura infantil. E, em 2015, aos 11 anos de idade, Marley Dias criou a hashtag #1000blackgirlbooks (#1000livrosdemeninasnegras) no Twitter. Frustrada com a homogeneidade das histórias que lia na escola, Marley colecionou livros com meninas negras para distribuir entre estudantes carentes.

A professora de educação Rudine Sims Bishop usa a metáfora das janelas, portas de correr e espelhos para ilustrar porque a diversidade é tão importante na literatura. Os livros podem ser janelas com vista para mundos anteriormente desconhecidos para o leitor; eles se abrem como portas de correr, permitindo que o leitor entre nesses mundos. Contudo, também funcionam como espelhos. Quando o livro nos mostra nossa experiência no mundo, cenas e frases calam fundo por mostrar aos leitores que suas vidas e experiências são importantes. Quando as crianças não se veem nos livros, a mensagem é igualmente clara.

Naturalmente, minha filha se identifica com os personagens por muitas razões que nada tem a ver com raça. Ela se identifica com o insaciável apetite de Sal por mirtilos e pelo amor de Harold por seu giz de cera roxo. Apaixonada por animais e barulhos da selva, ela se fantasiou de Max no Halloween. Na teoria transacional da leitura de Louise Rosenblatt, as pessoas trazem suas próprias experiências ao texto para compreender e encontrar sentido. Existem muitas formas de se identificar com um texto e uma delas é racialmente. Contudo, quando a raça ou etnia de uma criança é mal representada nos livros, isso indica alguma coisa sobre como essas facetas de sua identidade são valorizadas.

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Minha filha percebe esses espelhos não apenas nos livros, mas em todo o seu entorno. Enquanto assistia à bailarina Michaela DePrince, que sobreviveu à guerra civil em Serra Leoa, apresentar o “Quebra Nozes”, ela exclamou em meio à plateia silenciosa: “Eu gosto da menina marrom!”. Ela também percebe quando algum grupo é mal representado em determinados papéis. Uma vez eu disse que ela deveria dar a passagem ao motorista e ela respondeu: “Não é um motorista, é uma mulher!”. Foi a primeira vez que ela viu uma mulher dirigindo um ônibus.

Onde estão as meninas negras?

Para nossa nova estante de livros, imaginava mulheres negras em muitos papéis diferentes. Queria contos de fadas e histórias de ninar; livros sobre discriminação, direitos civis e justiça social; histórias de ficção em ambientes rurais e urbanos, nos EUA e em outros países; biografias de mulheres negras e histórias de meninas negras fazendo coisas do dia a dia. Precisava ir às compras.

Mas durante passeio em uma livraria de Nova Jersey, onde vivia na época, não encontrei um único livro infantil com uma mulher negra em papel de destaque. As capas mostravam muitas crianças brancas, animais e objetos personificados, alguns meninos de diferentes etnias, mas nenhuma menina negra. Eu olhei todas as prateleiras, tirei todos os livros, mas não tive sorte.

“Estou procurando livros infantis com mulheres africanas ou afro-americanas”, falei para a vendedora.

Ela não sabia nenhum título de cor e disse que “não tem como pra procurar esse tipo de assunto”, quando pedi pra ela olhar no computador.

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Ônibus espacial

Pesquisei na internet por nomes de personagens de diferentes etnias, além de autores e ilustradores que conhecia como professora. Eu li as críticas. Pesquisei o nome de algumas mulheres negras famosas e busquei livros a respeito delas. Saí em busca dos vencedores do prêmio Coretta Scott King Book Awards e do prêmio da fundação Ezra Jack Keats, que publicou em 1962 um dos primeiros livros infantis com personagens multiculturais: “The Snowy Day”.

Os efeitos da adição desses livros à nossa coleção foram imediatos. Quando minha filha viu um ônibus espacial em uma propaganda ela disse: “Ah! Foi a Mae que fez isso”, se referindo a Mae Jemison, a primeira afro-americana a viajar para o espaço.

Ela me disse que era como Wangari Maathai, a vencedora no Prêmio Nobel da Paz, porque “quando as árvores estavam quebradas, ela plantou novas árvores. E eu também adoro árvores”.

Minha filha também se apaixonou por novos personagens. Jamaica, do interior americano. Jamela da África do Sul urbana. Elizabeti da Tanzânia rural. Ela adora o fato de terem tantos conflitos em comum: ficam tristes, fazem confusão, perdem sua boneca predileta.

Quando comecei, tudo o que queria era consertar as prateleiras soltas da estante de livros da minha filha. No final, instalei espelhos da sua realidade e esse reparo era muito mais necessário.

*Sara Ackerman é jornalista e professora de educação infantil na Etiópia.

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