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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Nas estantes dos lançamentos lusófonos (a palavra politicamente correta para designar o universo da língua portuguesa), sempre procuro ler trechos dos livros. Esta degustação revela o que cai melhor em nosso paladar. Foi assim que decidi comprar Manhã (Assírio & Alvim, 2015), a mais recente coletânea de poemas de Adília Lopes, pseudônimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira (Lisboa, 1960).

Numa tradição em que a língua é instrumento essencialmente intelectual, com uma compreensão monumentalista da escrita, Adília destoa e encanta. Poeta dos pequenos eventos, de um uso lacônico, não-enfático, dos meios de expressão, ela consegue a proeza de contrabandear poesia para os suportes mais modestos.

Em Manhã, dois elementos determinam uma saudável miniloquência.

Os textos, em sua maioria, são pequenos parágrafos de prosa em que há um projeto de não dizer nada, amortecendo no leitor qualquer desejo de grandes revelações. A naturalidade cria um pacto mais próximo da leitura de diários íntimos, de crônicas ou de anotações ao acaso. É deste mínimo de investimento que ela tira os melhores efeitos sensoriais, levando o leitor a um estado de abandono meditativo.

Outro recurso é a fixação na própria biografia (chega a reproduzir fotos pessoais), numa espécie de memórias esfarrapadas, em que ela ilumina episódios, pessoas e sentimentos do passado distante e do presente sem grandeza de um eu embarcado em uma aventura comum – um eu que vai à padaria, dança sozinho para melhorar a diabetes, olha a tarde vazia ou se recorda de coisinhas insignificantes.

Formal e tematicamente, ela escreve naquilo que Roland Barthes (uma de suas admirações literárias) chamou de “o grau zero da escritura”. Neste limiar, localiza poemas praticamente sussurrados, sem nenhum impulso reivindicativo, em que cada palavra é a glorificação do mínimo que nos move.

Nesta sua lógica, ser negado é prova da qualidade:

“Uma médica psiquiátrica disse-me nos anos 80: sempre que uma pessoa faz uma coisa bem-feita é punida por isso” (p.119).

Não haveria, portanto, maior reconhecimento do que a negação; e o sucesso, um pacto de medíocres e relapsos. Esta compreensão da carreira profissional talvez explique as distinções concedias a Adília, tal como ela lista em “Os prêmios”. Só venceu pequenos concursos escolares, mas valoriza o que lhe deram (alguns livros e uma bicicleta), finalizando o poema: “Já não tenho a bicicleta, porque ocupava muito espaço e já estava estragada. Os outros prêmios tenho todos e faço bom uso deles. Dão-me muita alegria” (p.39). Sem honrarias, colecionando apenas estes nadas que são tudo, Adília Lopes desmonta uma das principais doenças da contemporaneidade – a ânsia de nomeada.

Apenas os ciscos existenciais comovem esta que é uma das maiores poetas da língua, com uma obra kafkianamente afastada dos barulhos da superfície: “escrever um poema / escavar uma toca” (p.32). A poesia como uma linguagem em segredo, um esconderijo infantil.

Miguel Sanches Neto tem 35 livros publicados. O mais recente é o romance “A Segunda Pátria”, pela Intrínseca. Ele vive em Braga e escreve a série “Cartas de Portugal” para a Gazeta.
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