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Robert Crumb tem álbum novo na praça. Publicado pela Veneta, “Viva a revolução!” é uma compilação de histórias inéditas, vividas pela feminista Lenore Goldberg, pelo machão Projunior, pelo boneco de neve Frosty e, é claro, pelo próprio autor e pela mulher dele, Aline. Os temas vão do feminismo ao extremismo, do meio ambiente ao consumismo. “Estamos sempre testando limites”, diz o desenhista americano, de 72 anos, na entrevista a seguir.

O historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) chamou o século 20 de “era dos extremos”. Como o senhor vê o mundo hoje?

Alguém, há muito tempo, acho que foi Charles Dickens, disse: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”. Humanos são criaturas “extremas”. Estamos sempre testando os limites. O que parece extremo hoje estará ultrapassado amanhã. Além disso, os humanos vão testar limites até causar catástrofes espetaculares, depois voltarão atrás, assoberbados pela destruição que produziram, o sofrimento, o derramamento de sangue. Eles vão se acalmar por um tempo. Então, começarão tudo de novo. Não têm jeito. Ficam entediados, se cansam da paz e da tranquilidade. Têm que provocar problemas, se manifestar, causar caos. O “mal-estar da civilização”, como o velho Freud o chamava. Ele estava profundamente desapontado com a raça humana. Esperava mais.

Um de seus editores disse certa vez que mulheres não compram suas coisas, mesmo que personagens como Lenore Goldberg sejam feministas. O senhor acha que isso é verdade?

Meu trabalho em geral não agrada às mulheres. “Lenore Goldberg, Girl Commando” não agradou às feministas. É uma fantasia masculina – minha fantasia – de mulher forte. Meu problema é que esqueci de desenhar quadrinhos com o intuito de seduzir as mulheres, de agradar a elas. Quer dizer, “esqueci” não é muito preciso. A verdade é que não sei seduzir mulheres, nem no trabalho nem no mundo real. Elas gostam de mim ou não. Não há nada que eu possa fazer. Meu trabalho e minha arte têm público predominantemente masculino, essa é a dura realidade. Há exceções. Conheço mulheres que parecem gostar genuinamente do que faço. Quando as encontro, fico espantado. Não acredito muito.

O feminismo é um dos temas do álbum. Ele mudou desde que o senhor criou Lenore, em 1969. Acha que está melhor ou pior?

Está melhor. Algumas gerações cresceram com o feminismo e se acostumaram a isso. São menos impulsivas e não estão sempre prontas a se ofender com qualquer coisa. Elas sabem que os homens não vão assumir prerrogativas e privilégios masculinos como antigamente. Estamos falando das classes médias das sociedades ocidentais. Em outras culturas, não é a mesma situação: China, Índia, África, países árabes têm um longo caminho a percorrer – na maior parte do mundo, na verdade, quando se pensa sobre o assunto. A maioria da humanidade ainda é atrasada e primitiva. Tipo uns 99,9%. Pessoas, é preciso amá-las.

Há muitas histórias, capas e ilustrações, como aquelas que o senhor fez em 1972 para o livro “Pot shots”, do seu advogado, Michael Stepanian, sobre direitos civis e maconha. As coisas mudaram muito desde aquela época, especialmente nos Estados Unidos, não acha?

Claro, a maconha está começando a ser legalizada nos EUA e até no México! Quem imaginaria uma coisa dessas!? Quando se pensa em todas as milhares de pessoas que foram para a cadeia por posse de maconha, uma das substâncias mais inofensivas de que os humanos desfrutam...

“Viva a revolução!”

Robert Crumb. Editora Veneta,
144 pp., R$ 89,90. Quadrinhos.

Você e Aline vivem na França desde 1990. Está satisfeito com a decisão, mesmo com acontecimentos como o ataque à equipe do jornal de humor “Charlie Hebdo”, em janeiro?

Quanto mais eu vivo na França, mais grato sou a Aline por engendrar nossa mudança dos EUA para cá, apesar do fato de que nunca aprendi a falar bem a língua para conversar com as pessoas. Deus sabe que tentei. Acho que poderia ter tentado com mais empenho. Não saio e me misturo o suficiente. Não trabalho com franceses, não tenho uma namorada francesa, não leio jornais ou escuto rádio ou TV franceses. Mas é um país muito civilizado para se viver, muito mais civilizado do que os Estados Unidos. O sistema de saúde é excelente. Você mencionou o caso do “Charlie Hebdo”? Tá bom, não é Xangri-lá. Mas onde é isso? Por favor, me diga onde é. Com o comportamento humano sendo o que é, não há lugar perfeitamente seguro ou civilizado e pacífico, embora alguns, como este, sejam um tantinho mais do que os outros. E claro que isso pode mudar. O céu pode cair sobre nossas cabeças amanhã. Não há garantia de uma segurança perfeita em lugar algum desta terra de Deus.

Muito antes dos ataques ao “Charlie Hebdo”, o senhor lançou “Gênesis”, em 2009. Recebeu ameaças de grupos religiosos por causa do álbum?

Zero. Fiquei agradavelmente surpreso pelas respostas positivas que obtive de pessoas religiosas sobre meu “Gênesis” ilustrado. Ironicamente, recebi mais críticas de fãs antigos que ficaram desapontados e acharam que “me vendi” porque não ridicularizei a Bíblia. Eles esperavam ver algo como a Eva fazendo sexo oral na cobra e coisas assim. Eu os decepcionei. Acharam que abracei a religião, renunciei ao meu passado de bad boy. De uma certa maneira, foi isso mesmo, acho. Mas, como eu disse na introdução, não acredito que a Bíblia seja a “palavra de Deus”. São palavras dos homens.

A possibilidade de voltar aos EUA passa por sua cabeça?

Nunca voltaremos. Aline e eu vamos ficar na França até o dia em que morrermos. Não há outra possibilidade, agora que nossa filha, Sophie, se casou com um francês e teve três filhos. Eles moram perto de nós, e estamos muito envolvidos em suas vidas. Estamos casados com a França, ligados pelo sangue.

O senhor acompanha os debates presidenciais entre democratas e republicanos?

Não acompanho a situação política nos EUA muito de perto. Eventualmente, vejo alguma coisa. Os argumentos e posições dos republicanos são tão malucos e extremos que me fazem pensar. Talvez essa pequena classe dos muito ricos esteja tão fora da estratosfera do poder, que não se importa com quem seja eleito presidente. Donald Trump é tão rico que pode concorrer só por diversão. Custa a ele uns US$ 100 milhões. Ele se importa? É só um jogo para ele. Ele vive num nível de riqueza além de qualquer compreensão. Como é o mundo para pessoas com aviões particulares? É um mundo muito diferente de onde vivemos, eu e você.

Os cards sobre ícones do jazz e blues, com ilustrações suas e textos de especialistas, são famosos entre colecionadores. Haverá uma nova coleção?

Estou pensando em cartões de músicos e cantores da Índia que fizeram discos na era dos 78 rotações. O problema é que raramente alguém escutou essas músicas. Teria que fazer um CD para ser encartado junto com a caixa de cartões. É uma ideia. Vamos ver se consigo realizá-la antes de bater as botas.

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