
Das várias críticas que você já leu, provavelmente sabe que o final de Lost, exibido ontem (25) no Brasil, foi considerado vago, quase decepcionante. Porém, em vez de culpar os produtores, nós os espectadores devemos perguntar: "O que fizemos de errado?"A produção do seriado se empolgou tanto com a interatividade com o público -- criada ao longo de seis anos de exibição -- que se tornou quase um videogame. Menos pela tecnologia e mais pela interatividade produto-espectador envolvida no processo.
Os julgamentos coletivos solidificados nos fóruns de discussão foram fundamentais para levar a trama ao final apresentado. Com Lost, o espectador se tornou também um personagem. A bela metáfora em torno do guardião Jacob, que da torre do farol a todos observa e julga, é a melhor descrição do comportamento da audiência.
Tínhamos a tarefa de avaliar os sobreviventes de um desastre aéreo que caíram em uma ilha onde todas todas as certezas da vida são confrontadas com seu exato oposto. Os personagens de Lost estabeleceram dicotomias fictícias entre fé e ciência, matéria e energia, nascimento e morte, solidão e comunidade. Em cada uma destas encruzilhadas, os espectadores foram voz ativa sobre a opção a ser feita pelo grupo. Claro que não de uma forma direta, algo do gênero: "se você acha que Jack deve ser o novo protetor, ligue para..."; mas as discussões nas comunidades em torno do seriado empurraram-no para o fim religioso/espiritual, que desagradou a várias pessoas.
Em Lost, várias áreas do conhecimento foram propostas como caminho e solução possíveis. Ciência, religião, filosofia e moralidade se entrecruzaram oferecendo à audiência opções sobre o final que poderia ser considerado o mais plausível. A bênção da jogabilidade também é a sua maldição.
Em ensaio publicado na última edição da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, o escritor e tradutor Daniel Galera, ao analisar o game Prince of Persia, relembra o conceito de jogabilidade, presente em avaliações sobre a qualidade dos videogames: "Por muitos anos, o termo "jogabilidade" vem sendo usado no mundo dos videogames para se referir a essa qualidade de prazer narrativo que parece depender de conceitos poucos claros de interação, controle, fluidez e diversão. [...] A tradução forçada perde o significado do original "playability". "Play", em inglês, se refere a muito mais que jogo. Pode ser traduzido também como brincadeira, fingimento, representação, atuação, disputa, gozação e mais um monte de coisas, atuando como substantivo ou verbo".Em cada uma das encruzilhadas do roteiro de Lost, a trama evoluiu a partir de demandas do público.
Episódio a episódio, a acumulação de informação sobre a série levava a audiência aos fóruns para trocar suposições sobre a atual situação e destino dos personagens, em uma espécie de pré-julgamento coletivo.
Acompanhando a série e as discussões desde 2004, percebi que a opção metafísica e espiritual sempre esteve entre as mais cotadas como explicação para os singulares fenômenos da ilha, e foram fundamentais para encaminhar a história para este final. As pontas soltas, das quais tanto reclamam os fãs, foram tentativas conjuntas (roteiristas e público) de propor outros explicações para o destino dos personagens. Tentativas fracassadas, mas não inúteis. A aventura do conhecimento é plena em becos sem saída.Todos os anos, uma leva de aspirantes a produtores batem à porta dos estúdios com ideias para programas. Grande parte deles jamais produziu dramaturgia eletrônica, mas os executivos das empresas sabem que grandes fenômenos dependem menos de conhecimento técnico e mais de senso de oportunidade.
Lost é um destes pontos fora da curva. Muitos shows estreiam todos os anos, e outros tantos são extintos. Só neste fim de temporada da tevê americana, 12 séries foram canceladas, algumas na primeira temporada. Isso ocorre porque as respostas do público são rápidas e forçam as redes a tomar decisões ainda mais rápidas. O controle remoto é um joystick, e o botão off é a ação que leva para o fim da história. Lost nos colocou no simulador, e foram nossas próprias escolhas que nos conduziram ao final do jogo.



