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cartas de portugal

Luiz Pacheco, o escritor português que foge a todas as regras

Um diário íntimo que acompanha o fim da ditadura salazarista

 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
(Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo)

Um diário é escrito com as vísceras. Por isso, poucas são as obras neste gênero que podem ser comparadas ao “Diário remendado: 1971-1975 (Dom Quixote, 2005)”, do enfant terrible Luiz Pacheco. Embora corajosamente publicadas em vida, numa época em que o autor já se considerava um fantasma iracundo habitando lares para idosos, estas entradas tratam da vida pessoal, literária e sexual (mantinha casos com homens, mulheres e consigo mesmo) de uma maneira tão crua que a julgamos impossível.

O contexto histórico e biográfico precisa ser delineado. No final da era salazarista, depois de ter sido várias vezes preso por atividades sexuais e literárias tidas como anormais, Luiz Pacheco busca reconstruir uma experiência coletiva. A sua primeira tentativa foi com as esposas e os vários filhos, peregrinando por habitações pobres em Caldas da Rainha e Setúbal, todos dormindo na mesma cama. Esta havia sido uma existência programaticamente pobre, numa felicidade fora dos padrões burgueses. Depois, ele constituiu uma comunidade boêmia em Massamá, arredores de Lisboa. Nos três casos, são localidades periféricas que servem ao escritor. “Diário Remendado” é o documento deste período em que por sua casa passavam todos os bichos da noite, homens e mulheres, alcoolizados, enquanto Luiz Pacheco escrevia artigalhadas, fazia traduções, produzia romances (Pacheco versus Cesariny é deste então) e cuidava de seu filho mais novo, o Paulocas, cuja educação em meio a este caos é relatada nestas páginas.

O escritor faz de seus dias um laboratório, fugindo a todas as regras. Enquanto convive com estes animais sociais encalhados, na mesma pobreza de sempre, com luz cortada, despensa vazia e vestindo trapos, ele anota com crueldade os detalhes desta fauna, explorando-os literariamente. Nenhum escritor em língua portuguesa se serviu de maneira tão escancarada das pessoas de seu convívio para fins de literatura. Mulheres, filhos, amigos, escritores, jornalistas, todos que privavam de sua intimidade acabavam personagens não só dos diários, mas dos livros de ficção e dos artigos nos jornais. Assim, as comunidades “anômalas” em que vivia (incluir aí o grupo de surrealistas do Café Gelo, em Lisboa) tinham a função de ser sementeira literária – Pacheco é um dos profetas da autoficção. “Cá estou eu a vampirizar os desgraçados que caem em Massamá!” (p.196).

Vida e atividade literária se confundem neste autor. Falando da intermitência de suas anotações, por conta principalmente do alcoolismo, ele mostra que seu estilo de escrever é o que o define como ser humano, e vice-versa: “O salteado nos dias e meses deste pseudo-diário, o desconexo, o incompleto casual, são condições de mim. Um escriba de circunstância. Um tipo que queria ser escritor mas antes queria ser um homem livre” (p.151). Uma liberdade que o colocou em confronto com a ditadura de Salazar e que criará atritos também com a esquerda vitoriosa no 25 de Abril, pois a literatura nunca se conforma às palavras de ordem.

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