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Literatura

Manifesto anti-higiênico

Uma garota com hábitos escatológicos e masoquistas é a heroína inusitada do romance Zonas Úmidas, da escritora anglo-alemã Charlotte Roche

Charlotte Roche mistura escatologia e erotismo em seu primeiro romance | Divulgação
Charlotte Roche mistura escatologia e erotismo em seu primeiro romance (Foto: Divulgação)

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A uma certa altura do romance Zonas Úmidas, o leitor (por mais desencanado que seja) não consegue mais aturar as atitudes bizarras da protagonista Helen Memel. A garota alemã, de 18 anos – criação da jornalista britânica criada na Alemanha Charlotte Roche – é a voz que narra seus próprios devaneios para se distrair do tédio em um quarto de um hospital, onde se recupera de uma cirurgia anal, após provocar uma fissura em suas hemorroidas depilando-se com gilete.

No início, não há como não se divertir com as revelações dessa heroína bem diferente daquelas dos romances açucarados à la Bridget Jones que atravancam as livrarias. Ela expõe, com a naturalidade de quem deseja chocar, atitudes em relação ao próprio corpo que podem causar engulhos nos mais fanáticos por higiene.

Comer as melecas do nariz nem enoja tanto depois que sabemos que Helen espalha gotinhas de a secreção vaginal nos lóbulos das orelhas para atrair o pretendente e fabrica os próprios absorventes, largando-os em espaços públicos logo depois do uso (para não citar as maiores ousadias, que o leitor poderá conferir sozinho). "Segure essa, indústria americana dos tampões!", vibra Helen após fabricar um deles com papel higiênico.

A personagem é a "ativista-terrorista" de uma campanha encampada pela autora contra a "tirania da higiene do sexo feminino". Sabiamente, Roche optou por escrever um romance, que já vendeu mais de um milhão de exemplares, no lugar de uma obra de não-ficção – que, talvez, só seria lida no circuito bicho-grilo. Como não vibrar com Helen quando ela desrespeita regras impostas culturalmente às mulheres como, por exemplo, tomar inúmeros banhos por dia, usar mini absorventes diários para não sujar a calcinha (mesmo sem estar menstruada) e se perfumar ao ponto de disfarçar o próprio cheiro?

"A maioria das pessoas pensa que tudo o que é natural fede e o que é artificial cheira bem. Quando uma mulher perfumada passa do meu lado, tenho vontade de vomitar. O que ela tem a esconder?", diz Helen. O problema é que a garota leva a sério demais sua missão libertadora, a ponto de se transformar, como ela mesma diz, numa "auto-experiência viva de higiene vaginal".

Tudo bem se preocupar em preservar a flora vaginal, prejudicada pelo excesso de sabões. Mas daí a se esfregar em banheiros públicos só para desafiar os ensinamentos da mãe de fazer xixi em pé, sem tocar em nada... A autora, é claro, carregou nos exageros para provocar o riso. Se sai muito bem, até o ponto em que começa a revelar as motivações que levam a garota a cometer tanta porra-louquice.

Aí, o discurso divertido e instigante sobre a sexualidade feminina cai por terra e Helen parece ao leitor, já angustiado ao ponto de quase largar o romance, só mais uma menina com sérios problemas psicológicos causados pela separação dos pais.

Para quem já estava irritado com o rumo dramático beirando o piegas que a narrativa vai tomando, o final é detestável. A autora erra na mão ao impor à personagem, tão deliciosamente escrachada, uma questão pessoal: Roche tem pais separados e, aos 31 anos, parece ainda não ter se conformado com o fato, a julgar pelo parágrafo um tanto mórbido e ressentido que introduz a história.

As relações sexuais da garota, contadas de forma despudorada, acabam ficando em segundo plano em descrições que impressionam mais pela exacerbação juvenil da escatologia. O sexo não é tratado pelo viés do desejo ou da pornografia, motivação mais comum em obras proibidas para menores, mas como o momento crucial para exercitar ao máximo os vários modos de se desprender do jugo da higiene – que tem desodorantes e desodorizadores de ambientes como ícones.

Mas também (e principalmente), é usado como cano de escape para se liberar da dor que sente pela separação dos pais. Helen se expõe às mais variadas situações sexuais, que narra no hospital com uma repetição obsessiva de palavras de baixo calão – exatamente como as crianças se divertem em fazer ao dizer "bunda".

Serviço

Zonas Úmidas, de Charlotte Roche (Objetiva, 280 págs., R$ 34,90). Romance. Classificação indicativa: 18 anos.

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