
Evangeline pensa em docinhos ao avistar os botões coloridos do casaco de tricô da vizinha, que a ampara, instantes antes de a menina de 7 anos se refugiar na escuridão da garagem, acocorada, sozinha, enquanto a ambulância recolhe o corpo de sua mãe morta.
Uma tragédia precoce. Contada em seus detalhes mais ternos e, por isso mesmo, duros, por ela já crescida. No primeiro capítulo de Olhos de Menina, a autora Susan Fletcher busca sensibilizar seu leitor com a fragilidade da personagem-narradora, atingida cedo demais pela tragédia. Escreve um romance em que as ações têm tanto peso quanto os sentimentos.
Órfã, sem fazer ideia de quem seja seu pai, embora todos se espantem com as semelhanças entre ela e ele, Evie é deixada aos cuidados da avó em um País de Gales sombrio e úmido, onde os adultos terão mais de sua atenção do que as outras crianças. Talvez para compensar a ausência da mãe, da qual pouco fala, mas obviamente sente. Ou por um traço de personalidade seu. O sentimentalismo se esvai e sobra certa rudeza, ressaltada pelo ambiente desagradável que a torna uma garota arisca.
Fácil pensar em Briony ao conhecer mais de perto Evangeline. Como a protagonista de Reparação, brilhantemente criada por Ian McEwan (conterrâneo de Fletcher), Evie também é uma observadora, a rememorar o passado. Aquele tempo em que as duas não eram mais que pequenas curiosas, um tanto "diferentes" dos outros com quem conviviam. Não exatamente ingênuas, nem inocentes.
Ainda como Briony, Evangeline não quer, no fim das contas, outra coisa senão reparação: a absolvição de um equívoco cometido na infância, cujas consequências ainda lhe pesam na consciência. A catarse que torne o arrependimento suportável. A diferença é que a autora deixa isso menos explícito (ou problematizado) do que aparece na obra de McEwan.
Naquela, surpreendia a reviravolta na narrativa. Fletcher, por sua vez, conduz o leitor até o fim do livro sem revelar a motivação mais profunda de sua personagem. Evie esconde o que nunca seria capaz de esquecer aquilo de que mais se lembra.
A narrativa de memória, consagrada como melhor romance de estreia pelo Prêmio Whitbread (menos importante no Reino Unido do que o Booker Prize apenas), faz das recordações de Evie, às vezes, impressões de uma menina ainda muito nova para entender o que se passa à sua volta.
Em outras, a consciência da mulher adulta que se tornou, e é, a verdadeira narradora da história, emerge.
A oscilação é agradável, e torna-a mais próxima, de um modo que a personagem se fixa nas retinas do leitor como a imagem de uma garota de 8 anos, ruiva e sardenta, calada e confusa, quase palpável. Uma visão que a foto da capa, de vastos e grossos cabelos ruivos entrelaçados, ajuda a consolidar.
Empatia
Olhos de Menina toca em temas delicados, como a morte, a culpa, a loucura e a pedofilia, pelo filtro menos viciado de um olhar infantil não estereotipado.
A história é enriquecida com tintas impressionistas (e sinestésicas), que dão consistência ao cenário distante e às personagens, não necessariamente simpáticas, mas complexas e capazes de provocar empatia e de revirar os sentimentos de quem as lê.
Inquietante, o livro prende da capa ao fim, na ansiedade de que os vãos do passado e não do futuro, como em tramas de suspense tradicionais sejam iluminados. O interessante é que não há nada a ser resolvido na superfície ou no tempo atual; a personagem adulta parece uma mulher realizada. O caminho entre o primeiro contato traumático com a morte e esse futuro de bonança é que é doído e repleto de potencial dramático, embelezado pela destreza de Susan Fletcher com a prosa lírica.
Seria o caso de dizer, com base nessa primeiro obra lançada no Brasil, que se trata de uma escritora promissora. A boa receptividade que seu segundo livro, Oystercatchers (outra história sobre perda e arrependimento), obteve na Inglaterra apenas confirma a primeira impressão.
Serviço
Olhos de Menina, de Susan Fletcher. Bertrand Brasil, 336 págs, R$ 39.



