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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Aos 84 anos, é natural que um grande poeta esteja amolecido pela morte, e que a espere com alguma resignação. Sua obra dificilmente terá a qualidade dos títulos que o consagraram, e a leitura de seus últimos livros acontece à sombra dos anteriores. Lemos a lenda e não mais os seus poemas, como é tão comum. Mas nada é comum na trajetória de Herberto Helder (1930-2015), autor que continuou rompendo com todos os convencionalismos até o fim. Não dava entrevistas, não promovia os seus livros, não guardava o que grandes intelectuais escreveram sobre suas obras, eliminava o arquivo de quase tudo de sua oficina literária, deixando apenas os poemas, permanentemente revistos.

As duas últimas coletâneas que ele havia organizado – “A morte sem mestre” (2014) e “Poemas canhotos” (2015) – elaboravam hermeticamente um verso avesso ao sentido fácil. Sentíamos ali o esforço para dotá-los de espaços semânticos em branco. Uma tão insistente descontinuidade nos tirava o chão.

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Agora, Olga Lima (sua viúva) recolheu em seus cadernos de projetos um conjunto de poemas para marcar um ano de morte do autor – “Letra aberta” (Porto, março de 2016). Talvez por ter sido menos trabalhada, a coletânea é de uma beleza mais encarnada do que as derradeiras. O poeta está mais à vontade neste livro que traz textos muito fortes, sem renunciar à gramática surrealista.

O tema é a vida/morte vista como “uma rosa de nada” (p.43). Em várias passagens, esta ideia da anti-existência marca o livro em que um eu confessa a falência da própria linguagem como algo decorrente deste estado das coisas:

escrevi umas poucas linhas como estrela e como exemplo,

mas faltava algures uma linha de silêncio que as ligasse todas (...)

(...) e falhei (mas não foi por causa disso)

– foi por causa do nada do mundo

foi apenas por nada (p. 40/41).

Uma tal concepção não pode tomar a morte como mudança. Ele a deseja de maneira natural, como se o fim fosse apenas mais um não-acontecimento: “de manhã quando acordo – que decepção – não estou morto” (p.36). Aos 84 anos, o grande tema e esta vizinhança com o nada que sempre se fez presente para o poeta.

Mas há uma força vital que persiste nele, na sua linguagem. Escreve poemas com letras que são corpos, matéria humana aberta, rasgada, ferida. A linguagem, “ferida de memória”, não o deixa se esquecer nem se pacificar.

E surgem versos extremamente entusiasmados, como neste poema erótico que começa com: “se eu tivesse dois ou três dentes de ouro / mordia-te o corpo todo...” (p. 45). No umbigo do nada, o encontro amoroso é a única pátria, que dura apenas um momento, como o poeta diz no final deste que é um dos mais belos poemas amorosos da língua, vertido num feroz esplendor.

Julgando-se melhor na velhice, por todo mundo achá-lo fora de combate, Herberto Helder se mostrou em grande forma, confessando que, para desilusão de seus rivais (os leitores, únicos rivais de qualquer obra), ele continua “duro duro duro” (p.59). No final se compara ao Papa Francisco, “que sabe judô e karatê e luta livre” (p.59). É com o domínio dessas artes que o poeta também nos derruba.

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