
Há a impressão de que as bicicletas vêm tomando as ruas pelo Brasil, sobretudo nas metrópoles. Ou, pelo menos, passaram a ser vistas pela sociedade e pelo poder público, que entendeu que planejar a ciclomobilidade é uma necessidade na dinâmica das grandes cidades, cujo trânsito é cada vez mais pesado. A bandeira da bicicleta, entretanto, não passa somente por desafogar o tráfego ou diminuir a emissão de poluentes, mas aparece como um sinal de que existem pessoas interessadas em sair do egocentrismo e da inércia para forçar as cidades a se prepararem para as pessoas, e não somente para os carros.
O movimento em torno da causa é parte de um processo que começou há cerca de uma década no Brasil, e só agora vem atingindo a chamada "massa crítica", explica o jornalista, cicloativista e autor do blog Ir e Vir de Bike, Alexandre Costa Nascimento. "A bicicleta e os movimentos sociais em torno dela surgem quase que como um símbolo político, uma bandeira que busca transformar a realidade de uma sociedade cada vez mais individualista, cujo símbolo maior é o carro." A consequência, segundo ele, são obras urbanas voltadas aos veículos motorizados, com a cidade se tornando cada vez mais um espaço de passagem.
Para quem enfrenta o asfalto aliás, segundo o Código Brasileiro de Trânsito (CTB), o lugar do ciclista, quando não há espaços como ciclovia ou ciclofaixa, é na rua, no mesmo sentido dos carros, utilizando os bordos da pista as condições são adversas, e existe, rotineiramente, casos de atropelamento (veja o depoimento de uma vítima em Curitiba na semana passada, na página 3). E não somente no Brasil: em Londres, no mês passado, seis ciclistas foram mortos apenas em duas semanas.
O artista plástico e idealizador da Bicicletaria Cultural, Fernando Rosenbaum, costuma repetir: o ciclista é um cavaleiro do seu tempo, que anda sem armadura e "contra a maré". Quem usa a bicicleta enfrenta um não lugar em meio à cidade, e costuma de deparar com uma certa tensão, tanto com o motorista quanto com o pedestre, e parece não ser tão bem-vindo quanto parece.
A pergunta que fica é: o que move essas pessoas que carregam uma ideologia ao mesmo tempo revolucionária e romântica, a encarar um trânsito que mata mais de 45 mil pessoas por ano no Brasil?
O autor do Ir e Vir de Bike define os dados como um "holocausto motorizado" e crê que os envolvidos são pessoas que desejam enfrentar o problema. "Para mudar isso, é preciso ter coragem e uma boa dose de ousadia, para provar, por A + B, que é possível", diz, mesmo lembrando que ainda falta no Brasil políticas eficientes que integrem a bicicleta ao cotidiano das cidades.
Já o responsável pelo projeto Vá de Bike (de São Paulo), Willian Cruz, que começou o site como um blog pessoal em 2002, fez a opção por ser mais prática. "Tenho 40 anos e cresci na cultura do automóvel. Morava há oito quilômetros do trabalho e, um dia, demorei duas horas para chegar. Experimentei ir de bicicleta, que já adotava como esporte, e levei meia hora. Era mais simples do que eu imaginava. Costumo dizer que o maior cicloativista de São Paulo é o congestionamento."
A percepção de que é preciso mudar uma dinâmica urbana já desgastada é o palpite do coordenador-geral da Associação de Ciclistas do Alto Iguaçu (Ciclo Iguaçu), Goura Nataraj para que mais gente use o transporte. "Esses jovens estão querendo ter uma outra experiência na cidade, não só a controlada pelo carro e pelos shoppings." Militante pela causa da bicicleta desde 2005, parte do grupo que pintou a primeira ciclofaixa simbólica de Curitiba em 2007 (na rua Augusto Stresser), Nataraj lembra que é necessário repensar a cidade. "Não basta só criticar o bem público e não se tocar de que eu também sou o causador do congestionamento que critico."
Demagogia?
Lucas Pereira Nery, sócio fundador da Bicicletaria.Net tem uma visão mais crítica sobre a "onda": a parcela das pessoas que utilizam a bicicleta como meio de transporte parece mais volumosa (segundo o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba IPPUC, 2% dos deslocamentos em Curitiba são feitos com o veículo, dados de 2008), mas apenas apareceu por ter se transformado em uma causa da classe média. "Ela não é novidade para a massa de trabalhadores. Às seis da manhã, você vê muitos deles, alguns vindos da região metropolitana. Não é brincadeira de fim de semana." Entretanto, ele reconhece que há uma consciência de pessoas mais instruídas em tomar uma postura menos dependente do automóvel.
O professor do departamento de transportes da UFPR, Garrone Reck, também concorda que o ciclista já existe "há muito tempo". "Mas ele foi perdendo espaço para o automóvel no Brasil, principalmente a partir da década de 1970, com ruas mais ocupadas pelos carros."
Convivência
Os cicloativistas e especialistas entrevistados pelo G Ideias acreditam que falta muito para que Curitiba seja considerada uma cidade amiga da bicicleta, apesar do plano estratégico cicloviário projetado para a cidade, lançado em setembro (leia mais ao lado).
O principal passo para o ciclista conseguir mais espaço, e, por consequência, melhorar a infraestrutura para o carro e o pedestre, é estabelecer um convívio mais harmonioso, com investimento em campanhas educativas, e não hostilizar um modal. "Não temos de atacar frontalmente o carro, mas é preciso ter a noção de destinar o espaço público para as pessoas", salienta Lucas Nery.
Em relação à infraestrutura, há soluções interessantes como as ciclovias, locais destinados somente à circulação de bicicletas, vias compartilhadas com pedestres e as ciclofaixas e ciclorotas dividindo a via com o carro. Apenas segregar o espaço, ao contrário do que se imagina, não é a forma de deixar o ciclista mais seguro, ainda mais se a ciclovia for estreita e projetada de forma errônea. Willian Cruz diz que a compatibilização da velocidade, com as chamadas vias calmas, é uma das melhores práticas. "Estudos estrangeiros mostram que, se o ciclista for atropelado a 30 quilômetros por hora, 5% morrem. A 80 quilômetros, somente 5% sobrevivem."
Aposta na bicicleta como negócio
Antes de fundar há dois anos a Bicicletaria Cultural junto com sua esposa, Patrícia Valverde, o artista plástico Fernando Rosenbaum começou a entender, ainda na adolescência, que era possível usar a bicicleta como meio de transporte. Foi além e, em 2000, viajou com amigos à Bahia de magrela. "Vi que precisava de tempo e disposição."
O negócio proposto pelo artista (localizado no centro da cidade, na rua Presidente Faria) mistura manutenção (sua maior fonte de renda são os remendos em pneus, a R$ 7), oficinas diversas, estacionamento e manifestações culturais, como exposições e shows. "Fazemos uma contaminação. Quem não vem pela bike, acaba se interessando, e vice-versa." A oficina é colaborativa, ou seja, qualquer pessoa pode se propor a consertar e ganhar a metade do valor do serviço.
O espaço venceu no ano passado prêmio da Aliança Empreendedora pelo pioneirismo social e ineditismo da proposta. O modelo do negócio, que ainda necessita de muitos ajustes para ser mais rentável, é o que Rosenbaum chama de empreendedorismo "brilho no olho". "É uma ideia que pode revolucionar as relações."
Outra boa proposta, mas que está temporariamente suspensa em Curitiba é o aluguel de bicicletas realizado pela Bicicletaria.Net, que funcionou por seis meses, fundado por Lucas Pereira Nery, , Rafael Milani e Luiz Eduardo Sheinkmann. Apesar da demanda e da boa aceitação, o negócio não se sustentou sem um patrocínio. "Vimos que o faturamento não acontecia, no mês que superamos o nosso custo foi de 50%", diz Nery. Com um grande patrocínio quase fechado, o sistema deve ser reinaugurado em breve, com planos a partir de R$ 10 por 24 horas de uso. Caso o subsídio pelo patrocinador seja total, a utilização poderá ser gratuita.
Consumo
Com poucos espaços de estacionamento na cidade com exceção dos shoppings centers e paraciclos pelo centro, os estabelecimentos não costumam oferecer um local específico para que o ciclista deixe sua bicicleta em segurança. Willian Cruz, do Vá de Bike, acredita que esse é um equívoco prejudicial ao comerciante. "É uma parcela de consumidores que o lojista está perdendo."
Cruz lembra que ainda há uma percepção errônea de que a vaga para estacionar o carro é o que chama o cliente. "Quando fecharam a Times Square, em Nova York, foi uma gritaria. Depois que restringiram o acesso, as vendas aumentaram." O professor Garrone Rech, do departamento de transporte da UFPR, concorda com a ideia, e sugere que, no centro da cidade, os estacionamentos para carros na via sejam retirados. "Não tenho piedade nenhuma. Não em todas as ruas, mas pensando em um roteiro. O automóvel terá de ceder espaço."










