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“A indústria tenta solucionar o problema da percepção acústica enchendo o quarto de alto-falantes”, diz Hugo Zuccarelli. | Elisandro Dalcin/Especial para a Gazeta do Povo
“A indústria tenta solucionar o problema da percepção acústica enchendo o quarto de alto-falantes”, diz Hugo Zuccarelli.| Foto: Elisandro Dalcin/Especial para a Gazeta do Povo

Quatro dias depois de emocionar fãs curitibanos, David Gilmour, o lendário guitarrista de Pink Floyd, cantou e tocou para 60 mil argentinos no Hipódromo de San Isidro, na grande Buenos Aires.

Mas há quem defenda que era possível ouvi-lo com mais nitidez a 20 quilômetros dali, em um pequeno teatro do bairro portenho de Abasto, onde um sujeito de cocuruto calvo e sobrancelhas peludas faz soar seus discos preferidos em alto-falantes holofônicos.

Invenção do argentino Hugo Zuccarelli, a holofonia é um sistema capaz de gravar e reproduzir sons em três dimensões, criando uma sensação espacial completa — e não apenas estereofônica de direita-esquerda.

A novidade surgiu no final da década de 1970, antes de a norte-americana Dolby criar sua tecnologia surround. Até hoje não são muitos os familiarizados com seu invento, embora o próprio David Gilmour tenha feito uso dele.

Em 1982, quando britânicos e argentinos se enfrentavam na Guerra das Malvinas, Zuccarelli imortalizava a holofonia em “The Final Cut”, um dos últimos discos do Pink Floyd.

“Foi o maior erro da minha vida. Recebi por dez dias e trabalhei por um ano e meio, tive de manter contrato de exclusividade, o produtor arruinou o disco e a gravadora não o promoveu como holofônico”, diz Zuccarelli. Mesmo assim, os ruídos de avião e a bomba explodindo na faixa “Get your filthy hands off my desert” mostram que o efeito funcionou, apesar do fracasso comercial.

  • Com Michael Jackson e o protótipo “Ringo” no estúdio Westlake, durante a gravação de “I just can’t stop loving you”, faixa de “Bad”.
  • Roger Waters, David Gilmour e Hugo Zuccarelli: antes de perder os cabelos e do fim de Pink Floyd.
  • Zuccarelli hoje, retratado pelo fotógrafo Elisandro Dalcin.
  • Espetáculo de Zuccarelli coloca o público no escuro completo para ouvir discos importantes no sistema holofônico criado por ele.
  • Série de eventos absurdos fez Zuccarelli se afastar da indústria fonográfica e não ser reconhecido como o inventor da holofonia.

Outra experiência traumática foi com o disco “Bad”, de Michael Jackson. A gravadora CBS foi comprada pela Sony e Zuccarelli saiu prejudicado no contrato. Processou a empresa, mas acabou preso por desacato à autoridade.

“O disco vendeu dois milhões de cópias com holofonia e eu não vi um centavo. Paguei multa, limpei a rua por seis meses e fiquei preso 90 dias nos Estados Unidos”, diz, satisfeito por ter se recusado a vender o invento a Michael Jackson por US$ 100 mil.

Paul McCartney também se encantou com a holofonia, mas, quando Zuccarelli descobriu que o engenheiro de som do ex-Beatle tentava roubar sua mina de ouro, a relação desandou.

Há uma boa dose de azar, rancor e quixotismo nessas histórias. Enquanto critica os todo-poderosos da indústria fonográfica e insinua as “estreitas ligações” entre a Sony e o narcotráfico, Hugo avalia que há mais interesses políticos e econômicos no mundo da tecnologia e da ciência do que se pode supor. “Se você descobrir a cura para o câncer, por exemplo, te matam”.

Holofonia dá “vida” a artistas mortos

Em Buenos Aires, Zuccarelli promove audições coletivas de seus discos preferidos, sem distorções e sem a interferência da visão, já que as luzes do auditório são apagadas. Trata-se de um irresistível oximoro: ouvir com absoluta clareza na mais profunda escuridão.

Numa quinta-feira de dezembro, presenciei uma sessão de “Meddle” (1971), do Pink Floyd. Era como se os instrumentos estivessem dentro da sala. Os latidos no blues “Seamus” e o coro da torcida do Liverpool ao final de “Fearless” ganharam novos contornos e dimensões. Sem contar o vento em “One of these days”, mais transparente que nunca, e a beleza de se ouvir os 23 minutos de “Echoes” ressoando em definição inédita.

“Há um componente visceral e emotivo que conecta as pessoas com o artista quando se ouve em holofonia. Quando tocamos alguém que já morreu, como Luis Spinetta ou Freddie Mercury, o público se emociona como se pudesse escutá-lo em carne viva”, diz.

Um som limpo

Diante dos tantos reveses da holofonia como sistema de gravação, Hugo Zuccarelli partiu para algo novo: os alto-falantes holofônicos. Ao contrário dos comuns, que separam as frequências sonoras em graves, médios e agudos, os holofônicos possuem uma única membrana, o que permite controlar sua vibração e garantir o tão desejado silêncio após a nota. O resultado é um som muito limpo e nítido, como se tem na vida real, livre de distorções.

Para explicar o fenômeno ele gosta de ilustrá-lo. “Imagine encher de água um copo com um restinho de leite achocolatado. Quando despejar a água, ela estará suja, porque o que sai do copo é mais do que entrou. O mesmo acontece com um alto-falante comum: você coloca Beatles para tocar, mas o que sai é Beatles com leite achocolatado”.

Protótipo

As sessões dos “Parlantes Holofónicos” ocorreram no Teatro Cego de Buenos Aires — único do mundo com uma programação 100% às escuras. O par de alto-falantes de quase cinco metros de altura é um protótipo construído artesanalmente por Zuccarelli, que seleciona os discos pela complexidade e riqueza de elementos sonoros, mas também conforme seu gosto pessoal. De Nirvana a Daft Punk, já tocou de tudo.

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