
Na virada da década de 1980 para 90, a fria e cinzenta cidade de Seattle, no noroeste dos Estados Unidos, foi a capital mundial do rock. O antes “alternativo”, som de bandas como Mudhoney e Soundgarden, lançados pela gravadora Sub Pop, se tornou o fenômeno pop mais poderoso daquele período.
Em 1991, o álbum “Nevermind” do Nirvana chegou ao primeiro lugar da Billboard, ultrapassando “Dangerous”, do rei do pop Michael Jackson e a história da música mudou.
Na mesma época, na fria e cinzenta Curitiba, no sul do Brasil algo também estava acontecendo.
Longe do epicentro do terremoto, mas antenadas com o espírito do tempo, surgiram centenas de bandas de diferentes estilos e propósitos, com mais ou menos qualidade, formadas nas salas de aulas, pistas de skate, garagens e esquinas dos bairros da cidade.
Por força de uma série de circunstancias favoráveis, a cena do rock em Curitiba se sustentou com as próprias pernas e viveu uma experiência – nunca repetida – de notoriedade e efervescência criativa.
A imprensa nacional sacou a movimentação e logo (com algum exagero) tratou de comparar com a equivalente americana.
Seattle tropical
Na revista Bizz, o jornalista e produtor Carlos Miranda chamou a cidade de “Seattle brasileira”. O jornalista Jotabê Medeiros fez a mesma comparação no Estado de S. Paulo.
“Eles vem do frio e estão tomando conta do cenário rocker”, escreveu Jotabê, para quem a cena daqui tinha a vantagem de ser mais eclética. “O Curitiba Sound vai do thrash ao forró core”.
Quase vinte cinco anos depois da primeira banda subir no palco do 92°, o espaço icônico daquela geração, o Caderno G foi atrás de quem eram e onde andam alguns personagens daquele movimento.
E também de como se formou a cena que, contra os prognósticos de muita gente, não conseguiu ombrear nacionalmente com os contemporâneos Raimundos, Planet Hemp, Chico Science e Charlie Brown Jr.
11 bandas para entender o rock de Curitiba nos anos 90
“Viralização”
A cena noventista do rock alternativo de Curitiba não se formou de repente, nem de forma espontânea. Na geração anterior, bandas como Beijo AA Força, Os Missionários e Blindagem, entre outras, já faziam sucesso em maior ou menor escala.
Também já existiam espaços como o Berlim, no porão do Hermes Bar, o Hole ou reduto punk Lino’s Bar para dar vazão à música underground.
Porém, poucos hão de discordar que abertura do 92 Graus, em dezembro de 1991, foi catalisador de um novo momento.
“A gente aglutinou um sentimento. Levantou uma bandeira: é uma casa de show e só vai tocar banda com material próprio. Acabou sendo um viral: a cada show, os três meninos da frente do palco formavam uma outra banda” , disse o fundador da casa e também músico JR. Ferreira.
Mas só o 92 não bastaria. Outras condicionantes propiciaram o aparecimento da tal “cena”. O principal, claro, eram as bandas, que estavam por todas as partes.
Como acontece desde os Beatles, era nos colégios e nas vizinhanças que os iguais se reconheciam e montavam os seus próprios grupos.
Profusão de bandas
E o que poderia mesmo um menino de classe média fazer em 1992?
Comprar um skate (ou uma bike), ouvir música relacionada ao skate ou, pra quem ia mais além, fazer música relacionada ao skate.
A outra era reunir os caras a turma, montar uns instrumentos na garagem e fazer barulho. Depois procurar uns lugares pra tocar.
“Acho que Curitiba tinha predisposição a formar bandas de garagem por não possuir opções interessantes de lazer para adolescentes e jovens cheios de energia, em comparação com cidades como Rio de Janeiro”, compara Fernando Andrade, do uv ray. “O Jardim das Américas, na minha época, era um celeiro de bandas de garagem”.
Em seu livro sobre a história do psychobilly na cidade, Marcio Thadeu, ex-vocalista d’ Os Cervejas, fala em cerca de 180 bandas no ano de 1993.
Os arquivos do programa Garage, apresentado pela dupla de produtores Manoel Neto e Digão Duarte na extinta rádio Estação Primeira, entre os anos de 1996 a 2002, registram mais de 450 bandas diferentes.
O espaço nas rádios, aliás, era uma ponta do hexágono que criou uma espécie de “linha de produção” do underground da cidade.
Na Estação Primeira, em diversos programas,ou na rádio Transamérica, a música “feita em casa” ocupava espaço nobre.
Exposição que também chegava à TV no Ciclojam, produzido por Cyro Ridal na TV Educativa. Mais de 300 bandas passaram pelo programa que hoje está redivivo, com o nome de Espaço OFF, servindo de vitrine para a geração atual.
Imprensa
Outro vértice de divulgação foi a cobertura que a Gazeta do Povo passou a dar as bandas a partir de 93, quando uma coluna chamada FUN assinada por Abonico Smith passou a tratar de “cultura jovem”: quadrinhos, filmes com pegada pop e rock alternativo .
O FUN virou um caderno que dava protagonismo a diversidade de bandas locais.
No âmbito nacional, a novidadeira MTV dava espaço para todos e muitas das bandas daqui como Boi Mamão, Resist Control e outras conseguiram emplacar seus clipes na programação do canal que “todo mundo via”.
“A gente que estava dentro da cena nem percebia como tudo era legal. Aquela coisa de ‘santo de casa não faz milagre’. Quem vinha de fora, adorava. A mistura do romantismo do underground com um pouco do mainstream que a gente atingiu aqui”, observa Dudu Munhoz, ex-baterista do Pinheads.
MR. X e a máquina copiadora
Com algumas portas abertas, as bandas começaram a aprender a vender melhor seus peixes. Das artesanais cartas passaram aos fanzines e depois a projetos gráficos melhor pensados. Da distribuição de filipetas e cartazes a releases à imprensa nacional, as bandas viveram mais perto do profissionalismo do que nunca.
Neste contexto, um personagem misterioso deu grande contribuição. O músico Marcio Roberto do Santos trabalhava em uma secretaria de Estado operando a mais moderna máquina Xerox.
Ele percebeu que se repusesse os materiais – papel e tonner da impressão – seus superiores não perceberiam o desvio de uso.
Assim MR. X, como passou a assinar (Marcio Roberto + xerox), produziu milhares de materiais de divulgação para bandas ao preço do custo dos insumos.
“Ele fez mais pela música da cidade do que a secretaria de Cultura em qualquer tempo”, afirma Manoel Neto.
Hoje pesquisador, Manoel administra o Museu da Música Independente, um imóvel no Edifício Tijucas, no centro de Curitiba, que reúne milhares de materiais sobre a música produzida em Curitiba e no Paraná.
A maior parte é material sobre este período, o rock da década de 1990. Na época, Manoel era produtor, um dos sócios ao lado de Digão Duarte da Mais Records, um selo que lançou muitas bandas e coletânea como “Lototol” e “Borboleta 13” registrando o volume criativo do período.
Os lugares
Havia, por fim, palcos onde tocar. Além do inescapável 92º, mais democrático onde com bilheteria módica cabiam todos, havia espaços mais profissionais como o Aeroanta e o Circus, que exigiam maior estrutura e capacidade de atrair público das bandas.
“Curitiba era uma das cidades mais importantes. Tinha muitas bandas diferentes, muitos locais lotados, muita gente louca”, lembra o músico Gabriel Thomaz, da banda Autoramas, que escreveu um livro em quadrinhos sobre a cena dos anos 1990.
Aeroanta escalava bandas com capacidade de levar mais pagantes. Pinheads, Relespública, Woyzeck e Boi Mamão eram as mais requisitadas. Não raro, aconteciam shows para mais de mil pessoas todas as semanas, algo impensável atualmente.
E quem era este público?
“Jovens universitários ou em vias de sê-lo, sedentos por cerveja, sexo e diversão. Era isso que estava no ar. A galera queria a novidade”, lembra Dudu Munhoz.
Reproduzindo este perfil de público 20 anos depois, vê-se que é o mesmo perfil que lota os shows de sertanejo nas grandes casas de Curitiba atualmente. Mudaram os costumes.
Por que ninguém estourou?
Enquanto estava nos palcos e tentando aparecer na MTV, a geração do rock nos anos 1990 ainda não sabia, mas estava espremida entre dois mundos diferentes. Menos de dez anos antes, tinha estourado o rock nacional e as grandes gravadoras apostaram em bandas como Titãs, RPM e Legião Urbana (e ganho muito grana também).
Assim, um contrato com um a grande gravadora era o que todos ainda queriam, mas ninguém suspeitava que em pouco tempo, com a popularização da internet e das trocas de arquivos digitais, o mercado fonográfico iria levar um golpe do qual ainda não soube levantar.
Mesmo assim, os olhos das gravadoras estavam voltados para o “Curitiba Sound”. O auge se deu quando a Banguela Records, selo dos Titãs e subsidiária da major Warner enviou o produtor Miranda para gravar quatro bandas da cidade (Magog, Boi Mamão, Resist Control e Woyzeck) na coletânea Alface, em 1994.
Neste período, cerca de 20 bandas chegaram a assinar contratos ou pré-contratos com grandes gravadoras ou selos menores.
Em 1995, a banda pop Sr. Banana foi lançada pela Virgin dando a impressão do “agora vai”, a cena tão cantada seria acoplada ao eixo Rio – São Paulo.
Porém, apesar de várias tentativas não houve sequer um único caso de alguma banda que tenha sido bem sucedida no trato com as gravadoras. Com exceção, talvez, do Boi Mamão que lançou um álbum pela Paradoxx e da Relespública que conseguiu lançar um álbum pela Universal em 2000.
Maldição?
Condição que desperta inúmeras teorias, e é assunto obrigatório de pautas jornalísticas e conversas de bar desde então.
“Não há uma maldição sobre Curitiba ou algo que o valha. As coisas na música pop são complexas e dependem que muitos fatores, e não só a qualidade do produto, deêm certo ao mesmo tempo”, avalia o radialista e pesquisador do pop nacional Kid Vinil.
Para Manoel Neto, o romantismo da cena não teve força para enfrentar “dois inimigos”. Um interno: o conservadorismo da cidade que não conseguia ver o rock alternativo como “emblema” da cidade. O outro foi a estratégia das gravadoras em congelar com contratos e enrolar com projetos que nunca saíam do papel as bandas curitibanas com maior potencial de público, para que estas não competissem com os produtos que haviam escolhido para fazer sucesso, como Charlie Brown Jr, Jota Quest ou Raimundos.
“Rolou com a gente e com várias bandas. Você tá nessa desde os 14 anos e sempre sonha que algo vai acontecer, mas nunca acontece. Assina contrato e não acontece. Chega uma hora que tem que optar se vale a pena. Eu tive sorte de continuar, mas muita gente parou”, analisa o baterista Renê Bernúncia, ex- Boi Mamão e atualmente no Water Rats.
Tudo ou nada
O vocalista do Resist Control, Daniel Bittencourt, lamenta que a cena rock do Brasil só comportou duas possibilidades: a obscuridade do underground ou o sucesso do mainstream. ”Não sabíamos que poderia haver camadas entre eles e manter uma cena sólida de um tamanho mais adequado. Era ou tudo ou nada”.
Para o jornalista Abonico Smith, a distância que sempre manteve do mercado é o que faz a cena roqueira de Curitiba ainda seja lembrada com reverência.
“Os músicos de Curitiba sempre tocaram por hobby e é por isso que a musica aqui é tão boa. Por que nunca teve que ser a profissão, nunca tiveram que se adaptar ao mercado sempre foi espontâneo e com energia diferente. Por que é um hobby, é tocar para os amigos, as pessoas sempre fizeram o que gostavam em cima do palco”.
O fim
No começo do ano 2000, esta cena se dispersou. Muitas bandas pararam e muitas casas fecharam.
O cenário do rock foi dominado pelas bandas cover de rock clássico. Outras modas como a música eletrônica e o indie-pop se ocuparam o espaço do rock alternativo. Algumas das bandas e lugares, no entanto, se mantiverem vivos.
Outros novos se abriram e pavimentaram o caminho para outra geração de bandas nos anos 2000. Mas aí já é outra história.










