Autora de quatro romances com protagonistas lésbicas, entre eles Na Ponta dos Dedos (Record, 588 págs; R$ 49,90), finalista em 2002 do Booker Prize, o mais prestigiado prêmio literário inglês, e recém-lançado no Brasil, a escritora britânica Sarah Waters comemora o sucesso do filme O Segredo de Brokeback Mountain como uma "celebração do amor e desejo homossexuais". Mas suspeita do êxito de uma trama tão triste: "Sabemos que o grande público gosta mais de nós quando somos infelizes, suicidas ou trágicos!", disse.
A escritora, que funde sexo e crítica social, vai além em suas suspeitas com relação ao mainstream. Para ela, a maior aceitação, pelo grande público, de livros (ou filmes) voltados ou sobre gays, do que os que se referem às mulheres homossexuais, deve-se a fatores sobretudo financeiros: gays costumam ganhar mais do que lésbicas, cuja cultura sempre foi mais política e reservada.
"Nós nem sempre ficamos bem na tela", analisa. "Temos ficado mais soltas, o que acho bom, contanto que não percamos a perspectiva política completamente. A cultura gay masculina pode, francamente, parecer muitas vezes vazia, como se tratasse apenas de moda, estilo, consumismo e juventude. Odiaria que as lésbicas seguissem esse mesmo caminho."
Waters não despreza, no entanto, um rótulo digno do grande público: o de literatura gay. Para ela, é importante manter o título, sem que isso necessariamente implique em reduzir seu público.
"O lesbianismo sempre esteve presente em meus romances, nunca tentei esconder. Mas chamá-los de gay significa que eles têm um alcance menor? Ninguém falaria isso, por exemplo, de uma literatura dita negra. Acho importante manter esse rótulo enquanto ele tiver ressonâncias políticas. E espero que o leitor heterossexual tenha sensibilidade para ver que um romance lésbico também pode lhe interessar."
Dickens
O interesse, pode, de fato, extrapolar a idéia de guetos. Ainda que transpire erotismo, Na Ponta dos Dedos foi elogiado pelo apuro de seus detalhes, numa descrição da era vitoriana que valeu a Waters comparações com Charles Dickens (1812-1870). O livro que encerra o que a crítica chama de sua trilogia "lesbo-vitoriana", de que fazem parte ainda Tipping the Velvet (1998) e Affinity (1999) tem como personagem central a órfã Sue, que cresce rodeada de ladrões, num beco escuro de Londres. A menina é envolvida num golpe para enganar uma jovem herdeira, Maud, mas os planos são atropelados pela crescente tensão sexual entre as duas.
Waters, que trabalhou por anos em bibliotecas e arquivos públicos, é apaixonada pelos detalhes. Para Na Ponta dos Dedos, pesquisou gírias e pornografia vitorianas, visitou casas de campo e museus, andou por ruas antigas de Londres. À medida que sua história e personagens ganharam vida própria, o erotismo e os detalhes de sua pesquisa passaram para o segundo plano.
"O maior desafio foi organizar a narrativa para que cada informação fosse dada no momento certo. É um desafio ao mesmo tempo técnico e divertido."
No pastiche de literatura vitoriana de Waters cabem temas contemporâneos. Ela diz que tenta construir histórias que ressaltem questões de classe, gênero e, é claro, sexualidade. E conta que a drag king Nancy, de Tipping the Velvet, é provavelmente sua heroína mais atual, na medida em que se reinventa, brincando de um modo pós-moderno com seu próprio gênero.
"Todas as minhas personagens femininas se interessam pelas diferenças entre aparência e realidade, superfície e profundidade."
O viés político com que Waters impregna sua obra ultrapassa as questões imediatamente ligadas ao lesbianismo. E também liga o passado ao presente. A escritora mostra que os vitorianos eram tão divertidos e sexualmente ousados quanto poderiam ser hoje em dia. E que as discrepâncias sociais permanecem, com as relações assimétricas de ricos e pobres.
"A diferença é que os trabalhos que mais exploravam, como aqueles que envolviam crianças, por exemplo, foram transportados daqui para a Ásia ou África. De certo modo, era mais honesto quando tínhamos essas práticas logo aqui na porta da frente."
Terminado Na Ponta dos Dedos, Waters escreveu The Night Watch, que acaba de lançar no Reino Unido e que também sairá no Brasil. Recebeu críticas calorosas. A autora deu um salto no tempo: a trama do quarto romance se passa na década de 1940, quando a sexualidade das mulheres refletia as mudanças de seus papéis sociais no pós-Guerra. Os personagens gays permanecem. Assim como um olhar político. "São temas que percorrem toda minha obra. Como traição, perda da inocência e marginalidade."



